spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 21/04/2021
Via crucis do corpo
Livro de contos de uma das autoras mais consagradas da nossa literatura, a Clarice Lispector. Foi publicado pela primeira vez em 1974. Traz várias histórias que têm como relação o corpo. O universo feminino é sempre muito bem explorado nos textos, com descobertas, sentimentos, virgindade, gravidez, amor e sexo.
MISS ALGRAVE é o primeiro conto do livro, fala de uma mulher extremamente pudica, que reprimia com veemência toda forma de afeto, não bebia, não fumava, não comia carne vermelha, enfim, não era adepta aos prazeres da vida. Evitava até mesmo tomar banho para não ver o próprio corpo despido. Porém, sentia-de bastante solitária. Um dia, recebeu uma visita misteriosa de um ser Marte que veio amá-la. Ixtlan era o nome dele, que lhe pediu que tirasse a roupa e ela viveu uma experiência incrível. A partir daí, foi uma tremenda descoberta, ela passou a conhecer o lado bom da vida, desfrutar de tudo que era repulsivo no passado. Ela passou a esperar por Ixtlan, mas com a demora, passou a procurar por outros homens, abandonou a vidinha pacata de datilógrafa, queria somente ir em busca do próprio prazer, e aguardava também Ixtlan, pois era uma privilegiada, fora escolhida por um ser de outro planeta.
O CORPO é sobre um homem bígamo. Xavier é dono de uma farmacêutica e vive com duas mulheres, Carla e Beatriz. Ainda se relaciona com uma prostituta. Certo dia, viajam para o Uruguai. As duas esposas, durante uma conversa, decidem matar o marido. As duas concretizam o crime, são descobertas tempos depois, mas acabam não sendo presas, vão morar no Uruguai.
VIA CRUCIS conta a interessante história de Maria das Dores que, ao perceber que estava com a menstruação atrasada, foi se consultar com a ginecologistas, que constatou que ela estava grávida. Mas como? Era virgem, apesar de casada. O marido era paciente e já um tanto impotente. Logo pensou que era a Virgem Maria, o nome do filho seria Jesus. O marido, ao saber, vaticinou, então sou São José. O casal foi para a casa do campo esperar o filho, lá São José passava o tempo no ofício da carpintaria. Maria decidiu não colocar o nome do filho de Jesus, pois ele seria crucificado. Escolheu Emmanuel. Nasceu um menino bonito e forte. Ninguém sabe se enfrentou mesmo a via Crucis, todos passam por ela.
Em O HOMEM QUE APARECEU, a protagonista vai comprar cigarros e Coca-Cola e encontra um antigo conhecido, de quando estudou na Cultura Inglesa, o Cláudio Brito, um poeta que vem experimentando o fracasso na vida, está bêbado, acompanha-a até em casa e é convidado para subir. Eles têm um papo um tanto deprimente, até que ele vai embora e a mulher reflete sobre o ocorrido, crendo que o sucesso é uma grande mentira.
Em ELE ME BEBEU, Serjoca era um maquiador bonito e simpático. Aurélia era cliente é melhor amiga. Certo dia, foram a um evento importante e, na volta, não conseguiam táxi, até que um ricão boa pinta ofereceu-lhes carona. Estava interessado na moça, mas aos poucos Affonso Carvalho também foi prestando atenção em Serjoca. Marcaram vários programas em trio, até que, em um deles, Amélia pediu para o amigo maquiá-la e ele ressaltou todas as imperfeições do rosto dela. Affonso se interessou de vez por Serjoca depois disso e Amélia saiu de cena. No espelho, viu enfim um rosto humano. Ela era Aurélia Nascimento, acabara de nascer, Nas-ci-men-to.
POR ENQUANTO é o conto mais curto do livro. A narradora parece ser uma escritora, que vive uma vida solitária e um tanto melancólica. Todos estão meio distantes, e ela vai relatando essa rotina solitária, do filho que mora longe, do outro que lhe deu o maior presente que foi ter ido almoçar com ela no dia das mães, de como ela vai buscando distrações para fugir da melancolia. Sabe que tudo é por enquanto, as coisas boas e as ruins. Talvez por isso não se desespera.
DIA APÓS DIA mais parece uma crônica da própria Clarice. É uma escritora falando sobre a sua vida, a rotina de casa, como lida com a profissão de escritora, com os compromissos do ofício, etc. Ela vai jogando no papel tudo meio que despretensiosamente e conseguimos muito enxergar ali a personalidade da autora. Tem muita ironia ali. A narrativa me fez lembrar muito da icônica entrevista de Clarice para a TV Cultura, de como o mundo a enxergava como uma grande personalidade e ela encarava tudo aquilo de forma meio que tediosa, e encarava aquele fazer literário de uma forma bem menos glamourizada.
Em RUÍDO DE PASSOS, Cândida Raposo, já com mais de 80 anos, foi ao ginecologista e o perguntou, ainda que constrangida, quando ?aquilo? iria passar. O médico respondeu que nunca, era da vida. Ela achou absurdo, como ainda ter desejo naquela idade, não há um remédio para combater isso? A vida era mesmo essa sem-vergonhice? Ninguém a queria mais...então ela perguntou, e se eu me arranjasse sozinha? O médico disse que seria um caminho. Naquela mesma noite, ela o fez, chorou, sentindo-se envergonhada. Dali em diante, usaria aquele mesmo processo, sempre triste, até a bênção da morte. A morte, pareceu ouvir os passos do seu marido Antenor Raposo.
ANTES DA PONTE RIO-NITERÓI é um conto narrado como se fosse uma grande fofoca, ocorrido em Niterói, num tempo em que a famosa ponte ainda era um sonho. Uma jovem noivinha estava bem doente, precisou amputar a perna. O médico que a tratava o fazia com muita dedicação, mesmo sabendo que o pai da moça era amante de sua esposa. A menina, já sem perna, perdeu o noivo, que não queria uma aleijada. A família implorou para que fingisse ainda gostar da noivinha, seria por pouco tempo, pois a vida dela seria curta. Não houve jeito, e três meses depois ela morreu. O noivo insensível já tinha uma amante, que em uma noite de ciúmes, jogou água quente no ouvido dele, que foi parar no hospital. Ela foi presa, saiu um ano depois para encontrar com quem? Ele mesmo, que estava surdo, mas ficaram juntos de novo. Logo ele, que não queria uma aleijada agora estava também com defeito. A narradora muitas vezes se confunde na história, assim como se confunde uma pessoa ao contar uma fofoca de ?ouvi dizer?. Ela encerra falando que não sabe mais nada daquela gente, diz que às vezes enjoa de gente, mas passa e novamente fica curiosa e atenta nessas histórias.
Em PRAÇA MAUÁ, conhecemos a história de Luísa, que apesar de casada, era dançarina no ?Erótica? e até fazia alguns programas. Lá ela era Carla. Sua melhor amiga era uma travesti, que mesmo de família nobre, abandonou tudo para seguir a sua vocação. O nome era Celsinho, na boate Moleirão, que também adotou uma menina de quatro anos e lhe dava tudo do bom e do melhor. Um dia, Carla aceitou dançar com um homem que era objeto de desejo de Moleirão, que era vingativa e ficou indignada. Na volta, falou empolgada que com aquele iria até de graça, como é bom dançar com um homem de vaidade. Moleirão respondeu de forma bastante malcriada dizendo que nem mulher de verdade Carla era, não sabia estalar um ovo, e ela sabia. Carla virou novamente Luísa, saiu de lá atônita. Na Praça Mauá, de pé, sozinha, às três da manhã refletiu que de fato Celsinho era mais mulher que ela.
Em LÍNGUA DO P, uma jovem professora de inglês se organiza para passar uma temporada nos EUA, vai de trem até o Rio, está sozinha, até que entram dois homens que começam a falar na língua do P que vão violentá-la e, se reagir, assassiná-la. Sem saber o que fazer, pega um cigarro e finge-se de prostituta, pois eles não devem gostar de vagabundas. Ela sobe a saia, baixa o decote e fica sambando. Os caras só dão risada, até que vem o bilheteiro e o maquinista e a tiram do trem, entregando-a para a polícia. Ela não sabe como se explicar. Passa uma moça que a olha com desprezo e entra no trem. A professora vai para a delegacia, é fichada, passa três dias por lá, até que é liberada. Chega ao Rio, perdeu o voo, tem que comprar outra passagem. Ela se hospeda em Copacabana até o novo voo, andando, passa por uma banca de revistas e vê uma manchete de uma moça que foi violentada e morta no trem. Foi aquela mesma que a olhou com desprezo.
MELHOR DO QUE ARDER conta a história de Maria Clara, moça bonita, forte, que foi mandada pela família para um convento. Obedeceu, mas o tempo foi passando e o desejo era cada vez maior por um homem, por um casamento, chegou a flertar com o padre e tinha que se mortificar, não aguentava mais viver somente entre mulheres, até que se encheu de coragem e deixou o convento. Um português, dono de um armazém, não deixava a moça pagar a conta. Até que os dois foram se engraçando, casaram e ela já voltou da lua de mel em Portugal grávida. Tiveram quatro filhos.
MAS VAI CHOVER é o último conto do livro. Conta a história de Maria Angélica, uma senhora rica, de sessenta anos, que se apaixona por um entregador, Alexandre, de dezenove, e engata um caso com o rapaz, que visivelmente tem nojo dela e está no relacionamento para explorá-la, viver de presentes e boa vida. Ele pede dinheiro até para se encontrar com namoradas, o que causa um grande sofrimento para a senhora. Até que pede um milhão de cruzeiros. Ela diz que não tem tudo aquilo, já havia gastado quase tudo o que tinha com ele. Alexandre a xingou de tudo quanto é nome mandou vender o apartamento, o carro, e dar tudo para ele, senão não iria mais para a cama com ela. Atônita, sentou no sofá da sala, ferida, só conseguiu dizer que parece que vai chover.