Aline T.K.M. | @aline_tkm 18/11/2016Trama repleta de camadasAntes de começar, preciso dizer que tudo em Loney contribuiu para que minha experiência com o livro fosse incrível. Só a capa já fez o início do trabalho, instaurando em mim a atmosfera sombria, reflexo daquele mundo melancólico e cinzento que logo mais eu encontraria na leitura. Então eu comecei a ler, achando que estava preparada para o que viria pela frente. Sabe de nada, inocente...
Trata-se da história de dois irmãos. Andrew – ou Hanny – é o mais velho e é mudo desde que nasceu, e o outro, de quem não sabemos o nome, é o narrador da trama. Ele é quem cuida e passa a maior parte do tempo com Hanny, pois é quem mais o entende e consegue se comunicar melhor com ele.
Junto com a família, o padre da comunidade e outros frequentadores da igreja, eles viajam todos os anos para a região do Loney, hospedando-se em uma casa antiga chamada Moorings. Essa viagem anual funciona como um retiro espiritual e inclui como objetivo principal a visita a um santuário local – além de muitas orações – em busca de uma “cura” para a mudez de Hanny.
Adolescentes, os irmãos e os demais voltam a esse lugar para mais uma dessas viagens, porém sem o padre Wilfred, que faleceu há relativamente pouco tempo – sua morte é um assunto desconfortável e evitado a todo custo entre os demais. Quem os acompanha desta vez é o novato padre Bernard, que ainda está se adaptando e tentando conquistar a confiança dos demais.
Ao longo dos dias na Moorings coisas estranhas acontecem, alguns segredos ameaçam vir à tona e conflitos estão quase a ponto de ebulição. Nas andanças pela região, os irmãos se deparam com assuntos nos quais não deveriam ter se intrometido, e têm contato com pessoas e práticas um tanto misteriosas.
Estamos diante de uma trama de terror puro e simples, não? Não. Ou não completamente, pois o livro é assustador para caramba. Só que a grande sacada aqui são as nuances psicológicas e o combustível que o autor nos injeta para pensarmos em certos temas – como a fé, assunto central da trama.
Não sou muito dada a livros com temáticas relacionadas à fé religiosa, salvo quando eles nos fazem pensar, como é o caso de Loney. Na realidade, o que Hurley traz aqui é o questionamento – e até a perda – da fé. Mecanismo de autoproteção, a fé isola, cria uma bolha de proteção contra um mundo que não justifica e mesmo dispensa a existência desse sentimento. Isso fica muito claro nos personagens adultos; a Sra. Esther Smith, mãe dos garotos, vive em um estado de “alienação voluntária”, em que prefere resguardar a si mesma e a família dentro da falsa proteção proporcionada pela fé. Não a fé simples e cotidiana, mas uma fé cega, que parece existir e ganhar força justamente porque pode, no íntimo, estar sendo questionada por essa mulher.
O que a gente também percebe aqui é que a fé vem sempre acompanhada do medo. Para a Sra. Esther Smith, muito provavelmente existe o medo e o desamparo que a perda da fé pode causar. E existe também, agora claramente, o medo do diferente (e desconhecido) e do inexplicável – ela teme e rejeita a condição do filho Hanny e, desesperadamente, faz de tudo para “curá-lo”. As pessoas têm a necessidade de ser submissas a algo – à fé –, de se saberem sob o olhar daquele que pune, mas que também pode salvar.
Além da sensação de que algo muito ruim acontecerá a qualquer instante, o livro também me impressionou pela complexidade não óbvia da relação dos irmãos entre si e com o mundo. Logo no início sabemos que os acontecimentos na Moorings e até as lembranças anteriores são um grande flashback do narrador, que já é um homem saído da meia-idade. O que esses acontecimentos e essa relação fez com os garotos ao longo da vida dá pano para umas boas reflexões no sentido psicológico da coisa toda. O que eu quero dizer é que os homens que esses garotos se tornaram foi algo imprevisível para mim, pelo menos de início.
Deu para perceber que eu poderia passar horas falando sobre Loney – talvez seja por isso que eu achei melhor não fazer esta resenha em vídeo!
Em seu romance de estreia, Hurley presenteou o leitor com uma trama repleta de camadas, cada vez mais obscuras, e com mistérios que vão além do compreensível. Loney é aquele tipo de livro que mostra a vida destituída de todas as cores com que a gente insiste em pintá-la. No fim, talvez tudo não passe de um cenário cinzento do qual cada um se protege como pode.
LEIA PORQUE
É um livro sombrio, que dá medo e, ao mesmo tempo, faz pensar. Ou seja, um combo dos melhores.
Além disso, Loney veio do mercado independente. Publicado originalmente em edição limitada – somente 300 exemplares –, o livro conquistou a imprensa e o público, rendendo a Andrew Michael Hurley o Costa Book Award de melhor autor estreante de 2015, um dos prêmios literários de maior prestígio no Reino Unido.
DA EXPERIÊNCIA
Me deixou ansiosa, me tirou o sono e me fez carregar essa edição capa dura liiinda – mas um tanto pesadinha – na bolsa TODOS OS DIAS.
FEZ PENSAR
Alguém pelamordedeus compra os direitos desse livro e transforma em uma adaptação bem cool e ainda mais sombria? Ops, parece que já estão fazendo isso – thanks, DNA Films! Só para constar, a DNA Films é a mesma produtora de Trainspotting (já falei sobre o filme e resenhei o livro no blog), A Praia e Não Me Abandone Jamais. Estou liberada para ter expectativas altíssimas?!
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