Helder 29/10/2019Uma leitura incômodaDias de abandono foi meu primeiro contato com a famosa e misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, e preciso dizer que não foi uma leitura muito fácil.
Ao ver as capas dos livros da Serie Napolitana eu sempre imaginei livros ensolarados e femininos, algo que não me chamava muito a atenção, mas o que encontrei aqui foi algo completamente diferente.
Dias de Abandono é uma grande porrada extremamente real e indigesta.
E para mim é difícil não imaginar que exista algo de biográfico na obra, pois é difícil que alguém consiga imprimir tantos sentimentos a um texto, às vezes belo, mas na maioria das vezes repulsivo, sem ter passado por aquilo.
Dias de Abandono conta a estória de Olga.
Após 15 anos, Mario, seu marido, após ajuda-la a tirar a mesa do jantar, lhe avisa que está indo embora de casa.
A principio ele vem com o papo de que precisa se encontrar, e ela imagina que aquilo será uma fase, mas logo percebe que não é isso. Aquilo é um processo sem volta. Marco a trocou por uma garota mais nova.
Ela, seus dois filhos, o cachorro e o apartamento.
Clichê?
Totalmente!
Mas...
Muitas estórias como esta já foram contadas. Da literatura russa a novelas mexicanas, mas acredito que nenhuma vez tenha sido de uma maneira tão visceral quanto esta narrativa de Ferrante.
Aqui a autora decide mostrar o que este clichê pode acarretar a uma mulher.
E esqueça Girl Power ou mulher empoderada colocando um salto alto e postando mensagens engrandecedoras no Facebook e selfies felizes no Instagram mostrando que pode ser melhor sozinha e todo o bla bla bla feminista século XXI.
O que assistimos aqui é a degradação psicológica desta personagem que não sabe como lidar com o “luto” desta separação. E a autora nos traga para a cabeça desta mulher, que a principio nega o que está ocorrendo. Depois começa a procurar explicações e que no fim passa a agir com um extremo ódio atacando tudo ao seu redor.
Obsessão, dor, frustração, depressão. A autora nos leva junto com Olga para que possamos sentir tudo aquilo junto com a personagem que parece ir se destruindo aos poucos aos nossos olhos.
Marco é um canalha. Mas as reações de Olga são extremamente assustadoras, portanto ela pode até ser uma vítima, mas está longe de ser uma mocinha. O processo a torna uma pessoa vil. E sua falta de amor próprio torna a leitura muitas vezes constrangedora.
Ao ler este livro tive uma sensação parecida com a que tive vendo Coringa este ano no cinema: Eu não queria ver aquela mulher passar aquela vergonha!
Elena Ferrante não poupa o leitor e usa uma linguagem que nos atinge, pois aquilo ali é vida real.
Olga fala palavrões, dá piti, faz chantagem emocional com seus filhos, joga as crianças contra o pai, tenta espancar o marido, xinga a nova namorada, e numa das cenas mais constrangedoras que já li na minha vida ela tenta seduzir um vizinho, afim de se sentir ainda uma mulher desejada, mas numa cena que só aumenta a sua degradação.
Com certeza Elena Ferrante não está aqui para fazer amigos, mas sim nos mostrar o quão cruel esta dor pode ser
Confesso que muitas vezes eu pensava como que uma pessoa pode se rebaixar tanto assim e tentei julga-la, para então perceber que cada um tem a sua historia e só podemos torcer para que a história de nossas vidas seja boa.
O livro traz diversas discussões muito pertinentes.
Imagina quando ela percebe que odeia o marido, mas olha para seus filhos e percebe que sempre verá seu marido ali, pois as crianças são fisicamente parecidas com o pai. Ou quando as crianças passam a ter contato com a nova família e passam adquirir vocabulários ou atitudes da “nova mãe” e compara-las as suas atitudes. É como se fosse uma cruz genética a ser carregada a vida inteira.
No caso dela um louco "amar e odiar" seus próprios filhos, por todas as lembranças que eles carregam.
Confesso que nunca tinha imaginado isso e parei para pensar qual seria meu comportamento.
Há tempos não lia um livro tão adulto. E não digo maior de 18 anos.
Olga tem 38 anos, e eu acho que este livro é recomendado pelo menos para pessoas maiores de 35, pois é necessária certa vivência para sobreviver a esta história e tentar não julgar as atitudes da personagem e desistir da leitura.
Como eu disse, foi uma leitura incômoda.
Se você curte isso, mergulhe de cabeça.
Se tiver ressalvas, coloque uma boia e veja se é a sua praia antes.
A dor da experiência pode ser maior do que o retorno.