spoiler visualizarPicolé de Atum 08/06/2023
O inimigo e a narrativa
"E possivelmente haverá, entre os assim chamados romances, um tipo de livro que mal saberemos como batizar. Será escrito em prosa, mas numa prosa que terá muitas das características da poesia. Terá algo da exaltação da poesia, mas muito da banalidade da prosa." - Virginia Woolf
As Ondas foi o meu primeiro livro da Virginia Woolf. Provavelmente, me faria melhor começar por algum romance anterior, como Mrs. Dalloway ou Ao Farol, tendo em vista o estilo bem único da leitura. E eu não descreveria a leitura das primeiras 60 - 70 páginas exatamente como prazerosas... até que algo clicou.
Me parece muito significativo que as seis personagens cultivem forte admiração por uma sétima, chamada Percival - e que, ao contrário das outras, não toma a palavra em nenhum momento do livro. Percival é descrito como um futuro herói, um líder, alguém naturalmente capaz de atrair a atenção e a simpatia. Alguém que reúne esperanças depositadas sobre o seu futuro... e morre aos 25 anos de idade, ao cair de um cavalo na Índia.
Percival é o protagonista que o livro não tem. Montado em seu cavalo, seria como o cavaleiro medieval que protagonizou as várias aventuras em série dos romances renascentistas, rompendo com a estrutura fragmentada das novelas de cavalaria medievais e direcionando os acontecimentos nas vidas das personagens para um sentido único. Ao cair do cavalo, também caem por terra os fundamentos estruturais de um romance narrativo.
Sem diálogos e com pouquíssima ação, os capítulos são compostos por solilóquios, nos quais as seis personagens alternam a palavra para exporem... as suas visões sobre a vida naqueles períodos. Nos solilóquios de Louis, vemos a descrição da conexão intuitiva que nutre entre a sua vida e o resto da história humana; com Susan, conhecemos a sua visão acostumada à "felicidade natural", contente com os ciclos e com a estabilidade; em Jinny, temos acesso aos seus relatos enquanto uma mulher de sensibilidade concreta, assertiva em suas relações e pouco idealista. E assim por diante.
Os personagens se expõem em solilóquios da infância à velhice. Eles estudam, trabalham, viram adultos, alguns se casam, tem filhos e envelhecem. E a narrativa flui sem crises ou grandes obstáculos. Tudo o que um manual de roteiro não manda você fazer. Por conta dessa ausência de fio narrativo, as fragmentações entre um solilóquio e outro saltam aos olhos.
A justaposição dos depoimentos das personagens expõe as diferentes possibilidades para a formação da identidade humana e nos faz questionar sobre aquilo que não fomos, mas poderíamos ter sido. As aspas, que sinalizam graficamente o fim de um solilóquio e o começo de outro, aprisionam o discurso das personagens, que não dialogam (ou seja, não realizam trocas) textualmente em nenhum momento do livro. Por que, embora tenham crescido juntas, Rhoda é misantrópica e Jinny é sociável? Seria cada pessoa um sistema fechado, uma alma presa à sua própria cabeça e incapaz de se movimentar com liberdade absoluta em direção a outras possibilidades? (É claro que não totalmente, e o livro seria filosoficamente frágil se fizesse essa afirmação de forma absoluta. Entretanto, as transformações vivenciadas pelas personagens por conta dos contatos externos são processadas e relatadas de forma psicologicamente compartimentada, e as mudanças nunca parecem afetar as suas questões essenciais mais profundas enquanto seres humanos.)
Além disso, apesar do estilo intimista das confissões, a impressão geral da leitura coloca em xeque esse intimismo. Ao colocar SEIS personagens para abrirem seus corações, o posicionamento de cada um é relativizado e colocado em perspectiva. Contrariando a proximidade de cada relato, a impressão estética do livro é de um forte distanciamento, levando a uma sensação de melancolia pela percepção de que as personagens (e, por transferência, também nós, os leitores) são apenas "mais um na multidão".
No último capítulo, Bernard, já velho, gasta cerca de 50 páginas para tentar reunir a sua vida em uma única narrativa. Na ausência de Percival, o "herói", é perceptível a fraca cola que liga os seus relatos prosaicos, levando-o a reflexões sobre a inadequação dessa forma para a fragmentada vida humana. No último parágrafo, porém, conclui que há sim um grande obstáculo narrativo para a sua existência, ao qual se contrapõe à moda do herói cavaleiresco:
"É a morte. A morte é o inimigo. É a morte em direção à qual cavalgo com a lança em riste e os cabelos esvoaçando para trás, como os de um jovem, como os de Percival, quando galopava na Índia. Esporeio o meu cavalo. Em direção a ti me lançarei, invicto e inabalável, oh, Morte!"
É a morte o princípio por trás da limitação. Do sentimento de insignificância. Da impossibilidade de atingirmos às outras possibilidades. Do desconforto provocado pelo distanciamento estético do livro. Nominalmente invocada apenas no último parágrafo, a Morte é o espectro que ronda as duzentas páginas de As Ondas. E é a força que sufoca, confina e aprisiona as personagens nessa não-narrativa, da tragédia de não serem heróis.
E as ondas quebravam na praia.