Gabriel 22/10/2020
Uma sonata de outono numa Itália submersa pelo medo
Quando se é jovem, o que é mais assustador do que a própria família? Helena Ferrante escreve sobre relacionamento familiar, e obrigatoriamente aborda desafetos, memórias corrompidas e, principalmente, violência.
Sendo este o primeiro romance da autora lido por mim, posso dizer que estou mais do que satisfeito. Tive medo do que encontraria por ler em alguns sites que, por ser seu romance de estreia, a qualidade poderia ser inferior do que se esperava. Eu não esperava por nada, e encontrei tudo!
As viagens de Delia, nossa protagonista que é obrigada a voltar para sua cidade natal aos 40 anos de idade, se aventura pelas ruas de uma Itália chuvosa e escura, agravada pelo sentimento incerto de luto misturado a alívio, nos levam a uma construção de "microuniverso" familiar que, infelizmente, é mais comum do que se pensa. A construção narrativa desta curta obra é formada por elementos de prosa, e carregada de sentimentos que lembram as famosas epifanias de Clarice Lispector. Somos convidados a entrar na mente de uma mulher que está perto da meia-idade, mas que revive constantemente as memória da infância, adolescência e juventude em busca de consolidar sua própria identidade, identidade esta ameaçada constantemente pelas memórias vívidas da mãe. É através do trauma revivido a todo segundo que as coisas podem se encaixar, e é só através da morte de Amalia que ela pode finalmente voltar a cuidar de sua própria vida. A presença constante e real da personagem mais icônica do livro, a submissa e misteriosa Amalia, não possui quase nenhuma fala direta, mas grita expressões, sentimentos e desejos somente através da mente de sua filha. Toda citação que desenvolve a relação das duas, me lembra fortemente o longa Sonata de Outono, de Ingmar Bergman. Como é difícil lidar com a dor que herdamos no ventre! Todos os acontecimentos passados constroem a narrativa do presente, e conecta todos os personagens numa história sobre dor e um perdão que parece ser impossível de ser alcançado. Seja na obsessão de uma filha por sua mãe, gerada pela possessividade de um pai violento, ou o toque rápido de um sexo cheio de amargura guardados da primeira idade, tenho certeza de que Ferrante nos convida a repensar nossas relações, dando maior atenção aquela que não temos controle, o amor que somos obrigados a receber daqueles que nos receberam primeiro. Qual é o seu amor incômodo?