MatheusPetris 10/12/2023
Quando Pardo (2007) menciona um artigo publicado por Francisco Costa no Estado de S. Paulo, no qual afirma que, daqui alguns anos, o ano de 2001 provavelmente ficaria marcado como o ano de lançamento de Eles Eram Muito Cavalos, ela não chama atenção apenas para a dimensão do livro e para a trajetória de Luiz Ruffato — agora, um escritor profissionalizado, que vive disso —, mas, principalmente, destaca importância do romance para a literatura brasileira contemporânea. Se este livro editado e reeditado inúmeras vezes, traduzido em diversos idiomas, possibilitou que Ruffato viajasse por diversos continentes para discutir sua literatura, além de indicar seu impacto, nos lança a uma pergunta: por que um livro tão particular, um retrato de uma São Paulo ainda mais desvairada que a paulicéia, ecoou de modo universal? Talvez, uma possibilidade de resposta esteja no texto-manifesto de João Antonio intitulado corpo-a-corpo com a vida. Antonio (1975) afirma que o universal se localiza dentro do particular, isto é, que a forma de se alcançar o universal é partindo do recorte. Vejamos como isso é possível.
O “romance-mosaico” (PARDO, 2007, p. 165) de Ruffato retrata de forma caleidoscópica um único dia da cidade de São Paulo, uma terça-feira, 09 de maio, semana que se encerra com o dia das mães. Visando representar a multiplicidade, uma cidade tão plural quanto São Paulo, Ruffato estilhaça a cidade com 70 fragmentos, 70 contos — como alguns gostam de ler as partes do livro —, são múltiplas vozes que ecoam ao decorrer do livro, múltiplos tipos de narrador. Quando lançado, o livro foi catalogado como romance, entretanto, em outras edições essa tipificação se modificou, afinal, “o livro aparenta ser de contos não o é e o romance que parece ser também, para ele, não o é” (PARDO, 2007, p. 165). A estrutura do livro é muito particular, apesar de existir uma divisão em 70 partes — o que passarei a chamar de capítulo —, essas partes quase nunca representam continuidade, é como se tudo tivesse acontecendo quase ao mesmo tempo, de forma paralela. Pensemos, primeiro, na pluralidade linguística que essa miríade de histórias (e não só histórias) nos revela. O livro começa com um “cabeçalho”, a primeira parte que nos informa sobre o dia do ano e semana e, em seguida, apresenta a previsão do tempo. Há, inclusive, uma espécie de folheto, um folder com informações da gráfica que o teria impresso, uma oração a santo expedito. No final deste capítulo, o texto diz “Mande você também imprimir imediatamente após o pedido” (RUFFATO, 2013, p.58). O que indica uma provável forma da gráfica se aproveitar de pessoas crentes na realização de desejos por meio da fé, ou seja, uma faceta de uma cidade como São Paulo, e ao mesmo tempo uma relação com a própria ideia gráfica diretamente relacionado ao mercado editorial, afinal, o romance mesmo subverte a questão tipográfica do livro. Há diversas tipografias — que nem sempre indicam vozes diferentes, mas muitas vezes sim —, trechos em itálico, negrito, diagramações distintas, o livro enquanto objeto também traz à tona a São Paulo fragmentada, moderna e diversificada. Posteriormente, temos horóscopo, narrativas lineares, narrativas elípticas, uma mulher deixando recados na secretária eletrônica e revelando agruras de sua vida, vozes que se misturam dentro da própria narrativa, isto apenas para ficarmos em poucos exemplos. Tatiana Salem Levy (2003, p. 176) chama atenção para essas vozes: “Os fragmentos são como vozes que ecoam de diferentes origens, os pontos de vida são oscilantes, focados a cada momento em um diferente quadro, a uma distância maior ou menor”. E além. Os fragmentos perpassam um presente dessas personagens, embora muitos deles rememorem o passado, recapitulem a vida destas — implícita e explicitamente. Recortes tempo-espaciais, mas densos, carregados de toda uma vida.
O espaço de São Paulo também é variado, diverso, então, sua representação deve seguir essa ideia. O livro, como dito pelo próprio autor, tem a intenção de representar coletivos de pessoas inusuais para a história da literatura, isto é, marginalizados, por esse motivo, boa parte dos fragmentos diz respeito a pessoas em condições de pobreza e sofrimento. Mas não só. E isso contribui para o romance ser tão poderoso. Falemos por meio de exemplos. No capítulo 20, “Nós poderíamos ter sido grandes amigos”, o narrador em primeira pessoa relata a história de um homem de classe média alta, que se imagina amigo de um vizinho com quem apenas se cumprimentava no elevador. O capítulo todo é construído em cima de “se”. O narrador imagina o vizinho como melhor amigo e vai contando o que poderiam ter feitos juntos — ao mesmo tempo em que se revela uma pessoa infeliz —, um passado inexistente, porém, bruscamente, a narrativa muda: “Mas nós não nos conhecíamos” e, logo adiante, “Hoje soube que ele não vai mais voltar pra casa”, pois seu “o corpo foi encontrado hoje de manhã”. Um relato aparentemente banal nos conduz a um choque, o vizinho foi sequestrado e morto. Esse será o presente de dia das mães que a mãe do assassinado terá. Afinal, sabemos, o dia das mães se aproxima e vários capítulos abordam isso. Por exemplo, um ladrão de esquina em busca de dinheiro, planeja algum roubo para presentear sua mãe. No capítulo 23 há outros “se”, possibilidades. Neste capítulo, faxineiros limpam o sangue da calçada, pois aconteceram duas mortes em frente ao restaurante, “o vermelho escoou para a sarjeta um riozinho espumoso correu para a boca-de-lobo”. Algumas dessas possibilidades são justamente a miríade da paisagem paulistana. Se os clientes chegassem antes, teriam vistos operários limpando uma vidraça de um edifício; veriam operários batendo cartão ponto; ouviriam conversas amenas. Mas não. Parece, nesta São Paulo ecoada, conter o choque, a desgraça.
Concluímos, então, que a representação (tanto linguística quanto espacial) diversa de São Paulo quando recortada nos fragmentos, que representam os mais variados espaços, busca alcançar uma realidade, mas uma realidade diferente da mimética, pois o mundo e as formas literárias são outras. Embora alguns defendam que existe uma certa aleatoriedade nos capítulos (LEVY, 2003), desconfiamos disso e do autor. Sim, os capítulos se bastam por si mesmos, “valem isoladamente” (LEVY, 2003, p. 177), todavia, nos choques uns com os outros, na relação entre eles, as possibilidades se intensificam. Um exemplo bem claro disso são os capítulos 21 e 22, respectivamente, “ele)” e “(ela”, como o próprio título já sugere, eles se completam, podem ser uma unidade. Conforme avançamos, vamos nos lembrando das vozes, relacionando-as, “como se as vozes continuassem ecoando mesmo depois de pronunciadas” (Ibid., p.178), comparando os causos, mesmo que estejam tão distantes temporal e espacialmente, fazem parte de uma mesma São Paulo. Talvez a pergunta tenha sido respondida: Ruffato conseguiu alcançar o universal pelo mosaico de particulares, sua colagem fragmentada.