Márcia Regina 01/09/2012
A falta de história pode ser a própria história?
Luiz Ruffato nos mostra que sim. Poesia, prosa literária, relatórios, textos jornalísticos, cinema, televisão, publicidade... Diferentes gêneros, tipos de discurso e vozes compõem um texto que retrata o redemoinho da cidade grande, o impacto da velocidade quotidiana que nos impede de perceber o que nos forma e o todo que somos. Nosso espelho está quebrado, grita o autor, e os pedaços são quase infinitos.
No transcorrer de toda a obra, vemos uma mescla de textos de forte lirismo (“O Neon vaga veloz sobre o asfalto irregular” - onde inclusive “Neon” adquire um sentido mítico ao ser escrito com inicial maiúscula) com listas, manchetes de jornais, classificados, etc. Dessa forma, o autor monta um retrato vivo e palpitante da cidade e da vida contemporânea, retrato que se torna ainda mais vivo na medida em que vários trechos são colagem, mais do que reescrita.
Reforçando essa ideia de retrato, vemos um cabeçalho identificando a obra temporal (9 de maio de 2000) e espacialmente (São Paulo). Mas, ainda antes do cabeçalho, temos o título, retirado (fragmento) de um poema de Cecília Meireles, cujas palavras direcionam a leitura, pois destacam a perda de memória ligada à falta de percepção. Não podemos lembrar o que não percebemos, e não podemos ser lembrados se somos incapazes de tocar, de atingir o outro, tão ausente e tão muro quanto nós.
As imagens são jogadas como flashes, perdem-se entre outras cenas, não permitem a personificação como indivíduo, como ente diferenciado do grupo, do todo que é a cidade.
Nesse sentido, o da angústia do não conseguir ser parte, mas também não conseguir não ser parte, é exemplificativo o texto da página 93. Atente-se para a expressão "parcial" constante no “título” e para o uso da letra minúscula na designação da cidade:
"45. Vista parcial da cidade
são paulo relâmpagos
(são paulo é o lá-fora? é o aqui-dentro?)”
Realidade e ficção mesclam-se, desemprego, miséria, esperança, sonhos e falta de perspectivas. Realidade crua com todas as suas nuances. A fragmentação também permite uma leitura não sequenciada. São pedaços autônomos (mas nem tanto quanto parecem em um primeiro momento) que apresentam textos curtos, mais ou menos intensos, mais ou menos complexos, não raro verdadeiros microcontos a serem decifrados pelo leitor, como pequenas brechas em muros de concreto.
A linguagem, ao se utilizar de diferentes linguagens, ao se fragmentar entre as vozes a que dá voz, também chama a atenção para a importância do questionamento, da relativização mesmo da cultura dita “oficial”. Até que ponto o ser humano deve almejar apenas o que os meios oficiais de conhecimento consideram “superior”? Somos múltiplos e torna-se urgente aprender a ver e compreender a amplitude da qual fazemos parte.
Fragmentar o texto é, de certa forma, reconstruir e reaproveitar seu sentido, mas, principalmente, é impedir o cerceamento, a limitação, o encarceramento da linguagem em uma ideologia ou visão de mundo.
E, assim, é uma forma de fugir do controle.