Gláucia 26/11/2018
"Pensem que isto aconteceu"
O que aconteceu nos campos de extermínio nazistas, o que acontece hoje pelo mundo, do Oriente Médio às nossas periferias, a profunda desigualdade que se impõe pelo mundo é uma repetição triste da história, um acúmulo de culpas e tentativas de desumanização, em sistemas sustentados por elites de poder que não têm pudor em descartar - não antes de sugar a dignidade - aqueles que veem como entrave aos seus projetos ("justificados" ao longo dos séculos pela religião e pela ciência). O relato de Primo Levi é absolutamente triste não apenas pelo que aqueles terríveis atos significaram em si mesmos e para aquelas vítimas. Mas também porque eles se repetem e nós... bem, nós assistimos. 11 milhões de pessoas estão prestes a morrer de fome no Iêmen. E o que falar do massacre imposto pelo Estado de Israel, com a conivência das potências ocidentais, aos palestinos? Essas mesmas potências ocidentais poderiam ter agido antes de 1945 para denunciar e acabar com os campos de extermínio, evitando, senão todas, mas boa parte da tortura e morte dos judeus. Mas não o fizeram, não é mesmo?
O silenciamento e a conivência gritam a cada linha em "É isto um homem?". E o que é pior, visivelmente o que mais colabora para a tristeza crescente de Primo Levi, é que não apenas parte de quem tinha poder para efetivamente mudar aquele cenário. Parte também dos oprimidos (lembrança imediata a Paulo Freire e sua clássica consideração sobre educação e liberdade), aqueles que estavam dispostos a negar qualquer noção de solidariedade e fraternidade em prol de algum status (a sobrevivência - momentânea, porque o plano da "solução final" era o extermínio - poderia ser garantia pela obediência e, claro, pelo que Levi chama de "casualidade"). Em um momento do texto, Levi evidencia que o suicídio era possível no campo, mas a humanidade parecia um sacrifício menor que a vida, por mais precária que fosse, exceto para alguns, esses que ele refere como sendo "feitos de outra substância", mais "próxima aos santos", mas para os quais não havia tolerância, muito menos perdão.
A indignação e o luto pelos judeus, homossexuais, ciganos, opositores políticos assassinados pelos nazistas com a cumplicidade de outras potências, devem ser alinhados à denúncia constante e à consciência de que não estamos livres desses cruéis massacres, que eles aconteceram e acontecem, ainda que em diferentes formas, em diversas partes do mundo e, muitas vezes, estamos sedados demais para vê-los. Primo Levi sabia que, separados/individualizados, aqueles prisioneiros não teriam chances contra a SS e o estado nazista se empenhou em precarizar todas as condições de existência nos campos a fim de desunir os prisioneiros e encaminhar a artificialização de uma hierarquia que destroçava o coletivo e sua humanidade. Mas também seria ingênuo pensar na união dos prisioneiros contra todo o poder bélico hitlerista. Eles não tinham chances sem a ajuda externa e militar dos Aliados. Porque se a solução para esses massacres e explorações não for pensada globalmente e contra o sistema que vive a partir dos lucros que essa desigualdade gera, eles estão fadados a se repetir.