Roberto Soares 23/02/2021“Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.”
A “Odisseia” de Homero é basicamente a primeira e melhor road trip da nossa literatura ocidental. Após os 10 anos da Guerra de Troia, estes 12.000 versos irão cantar o retorno de Ulisses para sua casa na ilha de Ítaca, junto de sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco. Ou melhor, das suas tentativas de retorno. Fato é que Ulisses será o eterno protótipo do pobre homem desgraçado. A palavra “Odisseia” significa uma longa jornada cheia de aventuras e eventos inesperados, e não é nada menos que isso que vamos encontrar aqui. Porém não serão aventuras e eventos quaisquer, e sim AS aventuras e OS eventos que definirão toda uma forma de contar histórias ainda depois de quase 3.000 anos.
A cada ilha aportada e a cada naufrágio sofrido, um novo povo será descoberto, amigo ou inimigo, humano, monstruoso ou divino. Conhecemos Polifemo e os gigantes ciclopes, quando Ulisses se provará ainda mais digno de seu epíteto “de mil ardis” ao lançar mão do genial “Me chamo Ninguém”. Há Circe e Calipso, arquétipos ideais do “uma louca, uma deusa, uma feiticeira”. O canto das Sirênias, o pavor de estar entre Cila e Caríbdis, os comedores da flor de lótus e os canibais lestrigões, o majestoso palácio de Éolo e a amabilidade de Nausica dos Feácios virão enriquecer esse patrimônio da Imaginação humana. Porém, pelo menos na minha opinião, nenhuma dessas aventuras será mais monumental e sublime do que a descida ao Mundo dos Mortos. A estética do submundo homérico é a mais bela (na medida possível) das representações do “Inferno” que temos na nossa literatura, vindo mais tarde a ser lapidada por Virgílio e coroada por Dante. Imagino que quando Hamlet agoniza “E o resto é silêncio...”, e este o silêncio que ele ouve: frio e esquecimento.
Existem outras narrativas na “Odisseia” além da odisseia de Odisseu. Há a Telemaquia, uma espécie de “jornada do herói/bildungsroman” do jovem Telêmaco, que guiado por Atena deixará de ser um jovem e acanhado príncipe para se tornar um homem guerreiro. Há o drama da rainha Penélope no seu lendário tear eterno para escapar dos assédios insuportáveis dos pretendentes, na esperança de que o marido ainda vive. E claro, assim como a “Ilíada”, temos também aqui os célebres flashbacks de episódios passados: o ardil do Cavalo de Troia e a subsequente tomada da cidade, a preparação para o retorno a casa e as fúrias de Poseidon e Atena como obstáculo a isso, a tragédia do retorno de Agamêmnon, seu assassinato por Egisto e Clitemnestra e a vingança de seu filho Orestes, sem falar na divulgação dos mexericos indecentes do Olimpo envolvendo Hefesto, Afrodite e Ares.
Enfim, apesar da “Ilíada” ser minha favorita, a “Odisseia”, mais palatável e aventureira, não perde em nada da grandiosidade da primeira. O Destino mantém seu papel de força principal, embora dando mais espaço para o Acaso. As ideias de Masculino e Feminino na “Odisseia” são ainda mais manifestas do que na “Ilíada”, e a obstinação e a esperteza de Ulisses não são menos admiráveis que a potência e a ira de Aquiles.