Lucas 04/07/2015
"Tudo o que vive é Sagrado", dizia Blake (até crianças, bruxas e ursos de armadura)
Quero falar um pouco sobre a bela trilogia Fronteiras do Universo do escritor britânico Philip Pullman. Li “A Bussola Dourada” aos 16 anos e, desde então, já reli os livros algumas vezes. Ele narra a trajetória da menina Lyra Belacqua (e seu “daemon” Pantalaimon), uma órfã de 11 anos vivendo na Universidade Jordan que quer reencontrar seu amigo Roger, o qual foi sequestrado pelos “papões” e levado para algum lugar no Norte. Ao mesmo tempo, ela deve levar o Aletômetro (a “bussola dourada” do título) em segurança e em segredo para seu tio, o ambicioso Lorde Asriel. Ele também está no Norte fazendo pesquisas sobre um estranho fenômeno: em meio às luzes da Aurora Boreal é possível vislumbrar o que parece ser os contornos de uma cidade inteira (em outra dimensão?) que pode, ou não, se alcançada (lembrando que o título original do livro, na versão britânica, é “Northern Lights”, “Luzes do Norte”). A trama se complica quando Lyra nota que é capaz de “ler” intuitivamente o Aletômetro: a bússola de três ponteiros, cujo nome vem das palavras gregas “alétheia” (“verdade”) e “metron” (“medir”, “medida”), responde a qualquer pergunta feita por seu portador, que pode descobrir a verdade sobre qualquer coisa no universo – desde que consiga interpretar seus complexos códigos e símbolos.
Para chegar ao Norte, Lyra passará por muitos problemas, travando contato com “papões”, gípcios, mercenários, e mesmo bruxas e ursos de armadura (“panserbjornes”). Na verdade, o autor nos conta a estória da lenta perda da inocência e da chegada da maturidade para uma menina que é (e de fato age como) uma criança (ao invés de uma criança idealizada e sempre inocente). Esta trajetória se dá através do contato de Lyra com personagens interessantíssimos como Lorde Asriel, Faarder Coram, Iorek Byrnson, Serafina Pekkala e outros. Entre estes, destaca-se a figura enigmática da bela Marisa Coulter, que conquista a admiração de Lyra com seu glamour e maturidade, mas, ao mesmo tempo, revela-se uma personagem ambígua que esconde segredos perigosos. A Srta. Coulter é uma peça-chave (junto com Lorde Asriel) para o desenvolvimento de uma trama maior que se estende pelos três livros e que irá tratar de questões ainda mais complexas, como a religião, a fé, e o par autoridade/liberdade no mundo moderno. No centro de toda a trama da trilogia está a questão do “Pó”: um elemento físico (uma partícula) que permeia toda a matéria do universo (dividindo as pessoas sobre a definição de Deus e do sagrado) e que, aparentemente, é o que faz o Aletômetro funcionar.
Muitas opiniões sobre os livros da série Fronteiras do Universo destacam o lado iconoclasta e supostamente “ateísta” e “doutrinário” de Philip Pullman. Aliás, frequentemente Pullman é comparado com C. S. Lewis, sendo “Fronteiras do Universo” o extremo oposto de “As Crônicas de Nárnia”: enquanto esta é vista como uma obra cristã, cheia de referências bíblicas e teológicas, os livros de Pullman promoveriam o ateísmo e o anticristianismo. Há resenhas muito boas sobre os livros que, no entanto, destacam o quanto o leitor não quer ser (ou não deveria ser) “doutrinado” ao ler um livro de ficção. Seus resenhistas talvez pensem que Pullman (ou Lewis) deveriam seguir a estratégia de J.R.R. Tolkien em “O Senhor dos Anéis”: neste livro, não há grandes referências religiosas e teológicas a respeito de Deus, Igreja(s) ou Escrituras Sagradas, porém, mesmo assim, Tolkien convence o leitor de que os valores ético-morais da esperança, da fé, do perdão, do amor, da amizade e, acima de tudo, do autossacrifício (valores importantes para o cristianismo católico, que era a fé de Tolkien) são fundamentais e devem ser cultivados – pensemos, p. ex., no significado de um hobbit, pequeno e fraco, atravessando a Terra-Média em direção ao reino de Sauron (“o Inimigo”), com nazgûls, orcs, trolls e mesmo um balrog em seu encalço, carregando o pesado fardo do Um Anel, apenas para destruí-lo na Montanha da Perdição e dar esperança aos povos livres do Oeste. Isto é doutrinação? Não exatamente, mas o autor nos conquista mesmo assim.
O meu ponto é: não existe obra de arte isenta de valores, ideologias e visões de mundo. Aliás, estas são o seu oxigênio. Se fôssemos esmiuçar melhor o caso de Pullman, veríamos, p. ex., que ele não defende NENHUMA forma de ateísmo. Pelo contrário, ele identifica a própria natureza com o sagrado (“o Pó”) e rechaça completamente qualquer forma de dogmatismo e fundamentalismo em religião e espiritualidade. Bastaria perguntarmo-nos sobre o significado das várias referências, no início dos capítulos, a poetas como John Milton, John Keats ou William Blake. Há uma intertextualidade fortíssima na trilogia de Pullman com obras como o “Paraíso Perdido” de Milton e “O casamento do Céu e do Inferno” de Blake, que são obras religiosas, mesmo que iconoclastas (alguns diriam heréticas). Aliás, mesmo que o autor fosse ateu, qual é o problema? Do meu ponto de vista, Pullman (que não é ateu, mas é, sim, um iconoclasta) apenas defende a velha tese iluminista da liberdade de consciência. Devemos nos lembrar de que liberdade de consciência não pressupõe o silêncio dos escritores sobre suas ideologias (o que seria impossível), mas, ao contrário, pressupõe a abertura dos leitores para visões de mundo completamente novas e diferentes – com as quais eles podem se identificar ou não.
Dito isto, recomendo muito a leitura (e a releitura) de Fronteiras do Universo. É uma bela trilogia de literatura fantástica, muito intrigante e que traz reflexões inusitadas e muito interessantes.
Boa Leitura!
P.S.: não gostei do filme. Achei muito ruim mesmo. O roteiro INVERTE a ordem cronológica dos acontecimentos do livro, sem qualquer cuidado que dê nexo à narrativa. Além disso (desculpem o spoiler, mas esse será positivo para os leitores), o filme CORTA o final do livro. É uma adaptação realmente péssima, que tinha tudo para dar certo (um elenco interessante, fundos, etc.), mas não deu.