janete 04/08/2013
Ler Memórias de Adriano, da escritora belga Margherite Yourcenar, lançado pela primeira vez na França em 1951, é mais do que fazer um passeio pelo bosque da ficção.
O livro, narrado em primeira pessoa pelo próprio imperador já velho e bem doente, é recheado de momentos líricos e povoado de personagens históricos deliciosos. O tom confessional nos coloca facilmente dentro dos olhos de Adriano, permitindo-nos ver através desses mesmos olhos todos os acontecimentos da época. Adriano, ele mesmo um adepto da filosofia estoica, escreve essa carta testamentária para seu filho adotivo Marco Aurélio, aquele que virá a ser o mais famoso imperador filósofo. Temos ali um relato, não de um homem acima do bem e do mal, mas sempre de um ser em luta constante contra esses dois polos enganadores. Um ser que acima de tudo está sujeito à paixões e equívocos, tal como o mais simples dos mortais. Os questionamentos doloridos de Adriano a respeito da vida são os mesmos nossos, as buscas que ele empreende ao longo de sua existência e as renúncias que, inevitavelmente, o acolhem pelas beiras dos caminhos, soam-nos mais familiares do que poderíamos imaginar.
Yourcenar demorou cerca de trinta anos para ver sua obra mais ambiciosa finalizada e por momentos teve dúvidas se conseguiria dar conta. Somente com a maturidade e com uma boa dose de persistência conseguiu dar cabo de sua obra prima e legar ao mundo seu trabalho divinamente inspirado pelos deuses romanos.
Alguns trechos dentre tantos excelentes:
"A felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor falta de delicadeza desfeia-a, a menor palermice embrutece-a"
"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas".
“ Não desprezo os homens. Se o fizesse, não teria o mínimo direito, nem a mínima razão para tentar governá-los. Eu os reconheço vãos, ignorantes, ávidos, inquietos, capazes de quase tudo para triunfarem, para se fazerem valer mesmo aos seus próprios olhos, ou, muito simplesmente, para evitarem o sofrimento. Sei muito bem: sou como eles, pelo menos momentaneamente, ou poderia ter sido”.
O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos, é talvez um bom filho; um idiota partilharia comigo seu último pedaço de pão. Existem poucos a quem não se possa ensinar convenientemente alguma coisa. Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui.
«Como toda gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou de nos convencer que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas."»
«... o gráfico de uma vida humana, que se não compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas sim de três linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi.»
«Cada um de nós tem mais virtudes do que os outros supõem, mas só o êxito as torna notórias, talvez porque se espera então que deixemos de as praticar.»
«Quando se tiver diminuído o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará a haver sempre, para manter vivas as virtudes heroicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projetos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas.»
«Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga suprimir a escravatura: o mais que poderá suceder é mudarem-lhe o nome.»
«Uma parte dos nossos males provém de haver demasiados homens excessivamente ricos ou desesperadamente pobres.»
"Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos."