Stella F.. 21/05/2024
Uma investigação usando a escravidão como pano de fundo
O crime do cais do Valongo
Eliana Alves Cruz - 2018 / 202 páginas - Malê
O livro começa com um suspense em torno do personagem Bernardo, um comerciante que estava se tornando rico e começando a frequentar a alta sociedade, mas apenas sendo aceito pelo dinheiro e não por sua pessoa. Não parecia um bom sujeito e era credor de Nuno que vai investigar por sua conta o assassinato desse mesmo comerciante, através do primeiro relato de Muana ao intendente. Muana, Roza e Marianno são escravos do Sr. Bernardo Lourenço e são peças fundamentais na trama.
Muana era bem-vista pelos patrões e realizava pequenos serviços tal como levar anúncios de seu amo para um jornal na cidade, Gazeta do Rio de Janeiro. O que os patrões não tinham conhecimento é que ela sabia ler e escrever. Acompanha o seu patrão a vários lugares e uma vez foi com ele à Vassouras e viu coisas horríveis, um negro sendo queimado vivo, no dia em que o dono da fazenda estava recebendo muitas visitas, entre elas seus patrões. Alguns visitantes ficaram apavorados, mas outros muito interessados, já que faziam parte do comércio de escravos ativamente. Ela foi mucama de Dona Inácia, mulher de Bernardo.
O intendente, que ficará responsável pelo caso foi indicado por D. João VI, sendo por coincidência primo de terceiro grau do falecido, apesar de não terem uma relação muito cordial.
O pai de Nuno veio de Portugal fugido por ter engravidado uma moça de boa família. Aqui trabalhou em uma livraria, e com o pouco dinheiro que possuía comprou uma casa melhor. Nuno deseja transformar a casa em uma livraria e para isso pediu um empréstimo justamente ao sr. Lourenço. Nuno é apaixonado por Tereza que nem dá bola para ele.
Temos notícias das chegadas dos escravos, dos nomes que recebem aqui de acordo com sua origem e há uma descrição das escravas de ganho, que dão o lucro de suas vendas para suas amas.
Apesar dos três empregados estarem longe do local do crime, o Intendente desconfia deles e vai investigá-los.
Entra em cena o personagem de sr. Toole que vai entrevistar Muana. Ela vai relatar sua vida pregressa em Moçambique quando era criança e como ela e a família tiveram que fugir porque o seu pai não aceitou participar com os demais habitantes de sua cidade da exploração de pessoas para venda. Vamos aprender sobre os rituais do nascimento de uma criança e dos rituais quando se tornam mais velhos, conhecer Umpulla, grande amigo de Muana. A escrava era mucua. Tomamos conhecimento da região com seus diferentes idiomas e dialetos. A família foge para a cidade de Quelimane, mas lá encontram Faruk, um comerciante da cidade natal deles que estava zangado por eles não colaborarem. As paisagens que Muana nos apresenta parece idílica. Seu pai e sua mãe nos são apresentados, assim como a Deusa Mãe, uma entidade religiosa poderosa para seu povo. Em Quelimane vão ter que se converter e a mãe de Muana começa a sofrer com isso, ela diz que não é o seu país e não é a sua religião. A mãe quando chegou foi circuncidada e só posteriormente Muana veio a saber, porque a mãe tenta protegê-la quando chegam as regras da menina. A mãe foi ficando louca, e leva a menina para fazer os rituais de seu povo e entregá-la ao amigo Umpulla, para fazê-la se livrar da circuncisão. A partir da entrega da filha ao amigo, alguém delatou sua mãe e não foram apedrejados, mas sim vendidos como escravos.
Os capítulos passam a ser principalmente com os personagens Muana e Nuno, os dois narradores do livro. E através de pistas numeradas, vamos tomando conhecimento da investigação. A pista 1 vai falar do personagem Marianno, um dos escravos do sr. Bernardo. Marianno sabia costurar, tinha conhecimento de feitiçaria, e alude-se ao fato de o cadáver ter sido encontrado coberto com uma colcha. Através da pista 2 conhecemos melhor a história de Roza, a cozinheira e escrava. Ela era estuprada por Bernardo, maltratada pela patroa, e cozinhava muito bem, e foi várias vezes acolhida e salva por Marianno e Muana.
As pistas só deixam cada vez mais claro que qualquer pessoa teria motivos para matar Bernardo, principalmente os três escravos da casa.
O pano de fundo é o relato do povo africano escravizado: suas línguas, rituais, crenças, seus deuses, sua vinda para o Brasil, sua falta de dignidade, sua exploração por terceiros, e como cada um lidou com isso, e de alguma maneira sobreviveu, sofrendo, mas também aprendendo. Passeamos por aquele tempo, e pelo movimento da cidade em torno desse comércio indigno, mas que tornava alguns muitos ricos e nobres.
Nuno que resolveu investigar por conta própria agora fica colado no intendente, responsável pela investigação oficial. Este resolve confrontar os três escravos novamente e segue para a fazenda. Ficam bêbados enquanto Nuno tenta encontrar os papéis que mostram que o Bernardo era seu credor. A herança do sr. Bernardo está para ser distribuída a herança, mas não havia herdeiro formalizado, os três escravos poderiam fazer parte do espólio. Nesse almoço Nuno invade a casa, está menos bêbado, mas alguém está só observando. Então ele percebe que parece que está sonhando, e descobre que fizeram uma armação, colocaram produtos na sua comida, e entregam os papéis a ele, com a condição de não contar nada ao intendente que provavelmente será a próxima vítima. "Seu ensopado tem algo para a sua memória!" (pg. 132) Ele é obrigado a prometer que guardará o baú que está no quintal para depois seus papéis serem queimados. "A primeira conclusão: Os três tinham mais poderes que o Intendente..que qualquer rei." (pg. 133)
Muana conversa mais um pouco com sr. Toole. Ela e Umpulla esconderam-se, mas foram flagrados e presos. No local encontraram seu pai já completamente maluco e doente. Ao perder a esposa e filhos e o sumiço de Muana ele perde a razão. Todos são embarcados em um navio onde sofrem muito junto com seus amigos. Há mortes por bexiga (varíola) e muitos corpos sendo jogados ao mar, como seu pai. No navio está Faruk que foi banido do negócio de escravos por tentar passar a perna nos superiores. Ele mesmo se tornou um escravo.
Há um relato sobre as vacinas, onde cada um diz que a sua é a melhor, é de procedência original, mas todos só queriam ganhar dinheiro. O povo escravo já conhecia o que deveria ser feito pela doença, mas era um processo mais demorado, então a vacina de algum jeito era o melhor, se fosse usada por todos. Aqui vemos uma crítica da autora mesmo a reportagem da Gazeta do Rio de Janeiro de 1815 ser real. "Quem chega a este lugar por um tumbeiro, senhor Toole, passa a ocupar o pior lugar neste mundo, mas ocupa. Onde ficam os que que não são mais de onde vieram e não chegaram a existir aqui? Seria isto o que o padre e os livros de vocês chamam de limbo?" (pg. 140)
As investigações continuam e aos pouquinhos sabemos o que aconteceu realmente com o Sr. Bernardo. No dia do seu noivado com Emerenciana, foi realizada uma grande festa, e o Sr. Bernardo apesar do dinheiro era um rude, um homem que se vestia mal. Os pais da noiva acreditam que não teria problemas deixar a filha quase casada com o noivo, mas ele a tenta estuprar. Um amante dela (ela a famosa "a hora da sesta" porque encontrava rapazes enquanto os pais dormiam), fica indignado, e entra em uma briga com ele, acabando em tragédia. Os escravos do sr. Bernardo o ajudam na empreitada de levar o corpo para longe.
Nuno irá ajudar Tereza na sua alforria. A mulata orgulhosa, juntou todo o dinheiro, mas na última hora sua dona não deu sua alforria porque o valor já era maior. Nuno então apela para as beberagens de Roza, e consegue armar para cima do Intendente, com uma carta vexatória para seu caso, e o Intendente então para não ser ameaçado por essa carta resolve o problema da alforria de Tereza e dos três escravos. Nuno se casa com Tereza, abre a loja, e ao final o Intendente perde seu cargo porque a família real vai embora do Brasil deixando seu filho Pedro I. Eles todos armam para o Intendente o mesmo bote que deram no sr. Bernardo, finalizando com a colcha de retalhos.
Apesar da Inglaterra estar abolindo a escravidão, os outros países não estão e apesar do acordo com a Inglaterra, cada vez mais escravos chegam ao Brasil. O Valongo deixa de existir a partir do momento que D. Pedro II, ainda menino espera sua noiva Tereza Cristina.
Com o avanço dos relatos de Muana, descobrimos que o sr. Toole era um fantasma que voltou para saber da história da escravidão e que outros a rondam como Umpulla e o próprio sr. Bernardo. Apelam para que ela os dê um enterro digno para que fiquem em paz. São muitas pessoas que esperam essa resolução, crianças entre elas. Muana, assim como o sr. Bernardo e Nuno conseguiam ver os mortos. "Nunca deixei de admirar e - por que não? - invejar incontáveis homens e mulheres que conseguiam demonstrar certo garbo e altivez, mesmo em tão deploráveis condições. E eu, nascido livre, com minha tez negra clara, lembrando apenas de meu pai português e raramente de minha mãe. E eu, tão miseravelmente pequeno perto deles, pois eram em sua maioria todos tão jovens..tão jovens. Este sim foi o verdadeiro crime do cais do Valongo. Levarão algumas eras para que seja pago." (pg. 193)"
Uma escrita muito interessante! É muito legal ir passeando pelo centro do Rio, conhecendo um pouco mais da cidade daquela época e ficando com cada vez mais vontade de visitar esse cantinho que não conheço: Morro da Conceição, Pedra do Sal, o Museu dos Pretos Novos e outros lugares.
Os capítulos se iniciam com pequenas notícias de jornal datilografadas sobre o assassinato ou algo sobre a cidade. A diagramação é excelente!