Toni 10/07/2021
Leitura 47 de 2021
O crime do Cais do Valongo [2018]
Eliana Alves Cruz (RJ, 1966-)
Malê, 2018, 202 p.
Há 4 anos, em 9 de julho de 2017, o sítio arqueológico do Cais do Valongo, localizado no Rio de Janeiro, recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade (UNESCO) por ser considerado o único vestígio material da chegada de cerca de 1 milhão de africanos escravizados às Américas. O Cais operou por quase 40 anos até ser parcialmente aterrado e reformado em 1843, quando passou a se chamar Cais da Imperatriz. No início do século XX foi novamente aterrado e transformado na Praça do Comércio, e assim permaneceu por 100 anos. Em 2011 foi redescoberto durante as escavações para as obras do Porto Maravilha das Olimpíadas.
Lançado em 2018, este 2º livro da Eliana Alves Cruz materializa em nossa imaginação moral o grande crime do Cais que a branquitude e a história dos vencedores tentou soterrar e, com isso, matar a morte e a memória de tantas vítimas. A história de O crime do Cais do Valongo é uma de muitos resgates, construída a partir de 2 vozes que se complementam narrativamente. Muana é uma africana de Moçambique escravizada que consegue se comunicar com o mundo espiritual. Nuno, um negro da pele clara “aspirante a livreiro” que consegue transitar galhofeiramente entre diferentes grupos sociais. De certa forma, enquanto Nuno representa um olhar voltado ao futuro, as conexões de Muana com a terra e sua vivência em África a mantém sobretudo no passado, de maneira que o presente permanece (como hoje) interdito ou impossível de ser vivido em sua plenitude por conta da escravatura e seus desdobramentos mais perversos.
É evidente que o Cais simboliza a chegada e enraizamento da escravidão no Brasil. Mas será outra história de violência—o assassinato de um comerciante do Valongo—que costurará as vidas de Nuno e Muana às de muitas outras personagens, reais e inventadas. Longe de aprisionar suas criações a um lugar de puro sofrimento (ainda que este não seja esquecido), O crime do Cais do Valongo celebra a resistência, o feminino e a ancestralidade sem perder de vista as bases desumanas de um sistema que ainda mata, fere e humilha apesar de sua pretensa abolição.