Sarah 11/04/2023
"Lemme be the ice queen."
Ainda estou digerindo essa história, mas preciso elaborar algumas coisas.
A angústia sempre foi romantizada na literatura, principalmente em mulheres. Otessa Moshfegh zomba dessa ótica ao apresentar uma personagem que não quer nem precisa da sua simpatia. Não é exatamente uma novidade, mas é bem elaborada.
O primeiro parágrafo desse livro é uma descrição das condições financeiras e de vida da narradora. Ela é (e sabe que é) uma jovem rica e dentro de todos os padrões esperados de uma mulher. Suas percepções mesquinhas, narcisistas e elitistas tornam a leitura amarga e ácida, assim como o cinismo com o qual a mesma retrata sua realidade e os demais personagens, como a única amiga que mantém por perto apenas para alimentar seu sentimento de superioridade.
A esperteza e destreza com a qual Moshfegh esmiuça as intenções e percepções indigestas da personagem é quase hipnotizante. Sua escrita dispensa clichês e dá as condições ideiais de pressão e temperatura para que a protagonista se monte e desmonte, em um registro despretensioso de alguém que não quer dar respostas. Sabe que perguntas são muito mais interessantes.
Otessa faz um comentário explosivo e desestabilizante sobre exaustão emocional. A angústia é feia. É corrosiva, pesada, ressentida. Suga energia, distorce intenções, tira toda cor e sentido das coisas. Entorpece e tampona qualquer sentimento, inclusive a empatia e os afetos. Se desdobra em um desprendimento da realidade, um cansaço existencial que dói nos ossos.
Como respondemos a angústia é algo imprevisível. A história de vida pode dar algumas pistas, mas nunca há uma causa concreta. A autora entende o lugar de privilégio de sua personagem, que possibilita que ela permaneça inerte e indiferente as consequências, coisas que não seriam possíveis caso ela não tivesse esse lugar.
A personagem quer dormir por um ano. Repete sua intenção diversas vezes. Mas é enquanto elabora sobre sua vida que revela o que busca: quer não pensar nem por um segundo em seus pais falecidos. Em sua obsessão por um homem abusivo e patético. No esforço fútil que fez para acompanhar as tendências, no vazio que não é preenchido nem por todo o prestígio e bens materiais que pode comprar. Em todas as decisões que tomou para não se sentir sozinha. Ela quer esquecer. Quer uma distância mental do seu sofrimento psíquico, que se manifesta em tédio e agressividade, raiva e desprezo.
As últimas páginas desse livro mexeram muito comigo. Sair de um estado de torpor emocional é exatamente desse jeito: como despertar em sua própria casa, mas ela está completamente vazia. A tomada de consciência sobre sua própria existência, como se a personagem tivesse se destruído e ultrapassado todos os limites apenas para se lembrar de que está viva.
A precisão da escrita de Otessa Moshfegh confessa seu entendimento sobre a angústia. É o relato de alguém capaz de captar sentimentos muito íntimos, dedicação que revela uma compreensão existencial desse estado de espírito.
Por fim e não menos importante: embora tenha sido um exercício interessante de reflexão, as piadas antissemitas e comentários racistas são injustificáveis, independente de ser ou não um esforço da autora em captar o sentimento da época. Transformar uma violência em ferramenta de ambientação ou simplesmente desenvolvimento do personagem é de uma insensibilidade grande vinda alguém que nunca sofreu esse preconceito. Não passa na cabeça desses autores que leitores não brancos são agredidos por esses comentários? Aliás, todos precisamos ser. Entendo o argumento de que a arte é amoral e não deve ensinar nada a ninguém, e que retratar não é necessariamente endossar um discurso, mas é um descuido e desleixo adicionar um debate e se remover dele logo depois. Desrespeitoso, desnecessário e na minha opinião, impossível de entender. Por essa razão não me sinto confortável em dar uma boa nota ao livro. Existem outras boas histórias com comentários tão ou mais ácidos e elaborados que discutem e descrevem esses sentimentos de dor, solidão e autodestruição. Tudo isso sem ser racista.