Luigi.Schinzari 25/09/2020
Sobre O Deserto dos Tártaros
O tempo é uma incansável fonte de inspiração para a literatura. Em A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann, temos o maior expoente dentro dos livros sobre o chamado ?tempo estático?, em que as personagens, isoladas do mundo em um sanatório para tuberculosos, perdem a noção do transcorrer natural de suas vidas, não sabendo reconhecer especificamente há quanto tempo estão vivendo naquele lugar afastado do convívio social. Dino Buzzati (1906-1972), autor, jornalista e pintor italiano, soube acrescentar a essa discussão novas matizes a questão tão complexa do tempo na literatura com sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros (Il Deserto Dei Tartari, 1940), enquanto nos imergia na questão da eterna promessa que temos de um futuro brilhante e sua procrastinação enquanto os anos vão passando e percebemos as esperanças fenecendo.
Na história, acompanhamos o jovem militar Giovanni Drogo, recém-promovido a oficial, sendo transferido para uma guarnição ao norte de sua cidadezinha -- local onde vive com sua mãe --, a Fortaleza Bastiani, forte escondido no meio de um vasto deserto e que se prepara para um possível e iminente ataque dos povos do norte, que tardam eternamente a chegar mas os militares do forte continuam a movimentar suas vidas em função daquela eterna promessa de invasão dos inimigos tártaros. Drogo, inicialmente indisposto com sua transferência àquele ermo local, pretende sair de lá em até quatro meses, mas por arroubos militares-heroicos e apoteóticos de poder, um dia, salvar seu povo do ataque dos bárbaros do norte, estende sua estadia na Fortaleza Bastiani até já não poder se desatrelar àquele local abandonado por Deus e pelos homens comuns.
Escrito no auge da 2ª Guerra Mundial, Buzzati bebeu diretamente desta inspiração ao localizar seu romance em um meio militarizado. O forte é para Drogo o que o sanatório foi para Hans Castorp em A Montanha Mágica; mas, diferentemente do romance de Thomas Mann, em O Deserto dos Tártaros vemos o tempo, primeiramente estático sob a percepção dos habitantes da Fortaleza Bastiani, ter suas nuances dependendo do momento da vida e do local em que Drogo, nossos olhos perante aquela realidade, por muitos momentos, surreal, vive e habita.
Mesmo vagando a passos lentos no início -- boa parte do curto romance se passa nos primeiros dias da estadia de Drogo --, logo Buzzati acelera a vida de forma abrupta, posicionando-nos em anos depois do início do romance para nos apresentar a inércia que o ainda jovem protagonista vai adquirindo, e mesmo sabendo rapidamente que a invasão do norte será nada mais que uma eterna promessa, o autor sempre cozinha uma possível invasão em momentos de tensão e, consequentemente, frustração, nossa e dos personagens. Vemos a vida de Drogo ser tragada pela esperança da invasão, assim como temos nossas próprias procrastinações e sonhos de um futuro melhor: sempre vindouro, nunca presente. Buzzati choca o leitor com o escoamento da vida deste jovem promissor por uma missão prometida que nunca irá chegar, e que mesmo assim Drogo, envelhecendo ao longo do livro, não deixa de pensar: No futuro... quem sabe? E, enquanto o tempo permanece estático para Drogo e seus colegas de serviço, temos o vislumbre de que é justamente o contrário: ele corre, despeja, esvai-se e não há como o recuperar.
O clima onírico do deserto e da Fortaleza Bastiani serve para compor o tom surreal e estático que Drogo percebe da realidade ao seu redor. As descrições de Buzzati, um pintor, em suas palavras, que, por hobby, durante um período, infelizmente bastante longo, fez-se também escritor e jornalista, carrega sua percepção sensorial de artista e as derrama sobre as páginas datilografadas. O deserto infinito e suas cores variantes durante as estações, a fachada da Fortaleza Bastiani e sua vasta autoridade expressa em seus muros carcomidos, e o interior do forte, uma garganta profunda de escuridão e vazio, semelhante a vida de Drogo quando passa a ter um único objetivo, um vazio e infindável, em sua vida -- são caracterizações que influenciam nos sentimentos que tomamos pela obra como um todo, moldando nossas emoções durante cada situação; e como Buzzati sabe trabalhá-las bem.
O Deserto dos Tártaros, não à toa, tornou-se um clássico italiano. É um romance vasto em suas mensagens e suas emoções, mesmo tendo tão poucas páginas (apenas 200, em média). A leitura, inteiramente uma sequência de duras verdades apontadas em nossa fuça, redime Drogo somente em seus últimos momentos. Por fim, abatido por uma vida esvaziada, Giovanni Drogo -- antes um jovem promissor e agora um velho que deixara sua vida passar como um eterno espectador -- encontra paralelo no Ivan Ilitch de Tolstói em seu momento derradeiro. Sem dúvidas, é um romance que, diferentemente da vida de seu protagonista, merece ser vivido e apreciado, e Buzzati nos alerta em cada página com sua escrita, por vezes seca como o deserto, por vezes lírica como suas pinturas -- sempre perfeitamente dosada --, nos alerta de que o presente é merecedor de nossas estimas tanto quanto o futuro incerto o é.