Dri Ornellas
18/02/2020No universo de livros sobre feminismo que já li, O feminismo é para todo mundo, da intelectual e ativista negra Bell Hooks, certamente é o que mais se posiciona por sua assertividade em relação ao qual é o objeto do feminismo: a luta contra o sexismo. Embora a autora não se aprofunde sobe o conceito de sexismo, ela preenche essa lacuna com situações onde a hierarquia entre homens e mulheres é a base de existência do patriarcado.
Um fato interessante é que ao longo de todo o livro, ela não usa em nenhum momento a palavra machismo. NENHUM. Isso porque desde o início, deixa claro que o sexismo é algo igualmente inerente aos homens e às mulheres: se o patriarcado é uma estrutura social, seria incoerente dividir sua perpetuação a partir do gênero. O que acontece, de acordo com a autora, é que os homens são os beneficiados pelo patriarcado e, por isso, não seria algo natural esperar que a luta feminista partisse deles. O que também explica porque muitas mulheres não se consideram feministas ou que reproduzam comportamentos sexistas (e/ou machistas).
Um outro ponto que achei polêmico foi sobre a maternagem, ela afirma que, normalmente, as feministas modernas são muito abertas às reflexões e práticas igualitárias, mas quando o assunto é o cuidado de seus filhos, elas não querem abrir mão do status especial e privilégios de ser mãe. Sabe quando você trabalha com uma mãe, observa que é sempre ela que leva o filho ao médico, pensa que o homem também poderia levar e culpa a sociedade machista por isso? Então, pode ser que essa mãe simplesmente não abra mão de levar ela mesma seu filho ao médico, simplesmente por achar que um homem não exerceria a função tão bem quanto ela, pensamento fruto do sexismo.
Uma defesa quase inédita em textos sobre o feminismo - pelo menos para mim, foi sobre o casamento entre heterossexuais. Normalmente, a família e o casamento são vistos como o núcleo da sociedade machista, mas para Hooks, o problema não é o casamento, mas a qualidade do laço afetivo: se o relacionamento for constituído numa base antissexista será uma oportunidade de crescimento e felicidade para os envolvidos, assim como qualquer outro laço afetivo e social: "... não há amor onde há dominação. O pensamento e a prática feministas enfatizam o valor e o crescimento mútuo e a da autorrealização em relacionamentos íntimos e na parentalidade. Essa visão de relacionamentos em que as necessidades de todo mundo são respeitadas, em que todo mundo tem direitos, em que ninguém precisa temer a subordinação ou o abuso, vai sem sentido contrário a tudo o que o patriarcado defende sobre a estrutura de relacionamentos. (...) Políticas genuinamente feministas sempre nos transportam da servidão à liberdade, da falta de amor ao amor. A mutualidade é a base para o amor."
Por esse tom enfático sobre o sexismo, por vezes, o texto pode deixar brechas para um possível apagamento das particularidades do movimento, como por exemplo, no ensaio sobre violência onde ela deixa clara a importância de pensarmos a violência doméstica contra a mulher, mas que, entretanto, essa violência doméstica também é executada por homens e mulheres contra crianças e que, ambas as violências - na verdade, todas as formas de violência, acontecem devido ao pensamento patriarcal que socializa pessoas para exercer a dominação sobre o outro. Ao meu ver, apesar do raciocínio ser correto, a equiparação dessas formas de violência não é eficaz em seu combate pois, quando uniformizamos seus modos de ocorrência, fica mais difícil encontrar os meios específicos para se combater cada uma delas em sua particularidade. Mesmo que a essência da violência, de um modo geral, esteja pautada na subjugação do outro hierarquicamente mais fraco, ela acontece de maneiras diferentes em cada contexto.
A luta do feminismo é contra a hierarquização de poder nas relações entre os indivíduos, e não contra o homem. Para a autora, afastar os homens do feminismo é contraproducente (da mesma maneira que achar que todo mulher só por ser mulher é feminista e tem comportamentos feministas). O feminismo é uma luta política e, como toda luta política, é uma escolha pessoal baseada em ações que se constroem (e desconstroem) no fazer diário e não necessariamente depende de nos autointitularmos feministas ou não.
O subtítulo "políticas arrebatadoras" é um excelente qualificador para o que achei do livro. Apesar de um certo incômodo em várias partes por a autora dispor de dados e fatos sem citar nenhuma fonte - talvez por se tratar de ensaios que foram publicados primeiramente dispersamente - o livro é uma leitura muito rica em reflexões fora dos moldes comumente vistos por ai, fazendo, até mesmo, muitas críticas às mulheres e às feministas.