Fefa 06/06/2011
Porque somos feitos de tentativas
“Não era só o mal e as tramóias que faziam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.
Seis décadas depois ela mostraria como aos treze anos de idade, havia atravessado, com seus escritos, toda uma história da literatura, começando com as histórias baseadas na tradição folclórica européia, passando pelo drama com intenção moral, até chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha, numa manhã específica, durante uma onda de calor em 1935”.
É difícil terminar de ler Reparação e dispor as palavras exatas para explicar todas as sensações envolvidas na leitura desta grande obra-prima. Mas que tal começar justamente ratificando seu valor como obra-prima? Oh, sim. Este é um bom começo, tamanha a sua magnitude, perfeição e profundidade. Mesmo horas após ter chegado a ultima página não consegui tirar o livro do pensamento. Folheei, reli minhas passagens favoritas, até ao filme fui assistir. Há tanto tempo que este tesouro esperava na minha estante, e foi como achar uma moeda de ouro incrustada em terra a apreciação e reflexão de suas palavras...
Partindo da expressão “cada cabeça uma sentença”, Briony, Robbie e Cecilia são três mundos distintos, três verdades despidas ao longo de suas trajetórias que, ora se reconhecem, ora se chocam. É claro que a verdade muitas vezes é distorcida pela superficialidade da percepção e se você é jovem demais está mais sujeito a equívocos e impulsos, certo? A resposta é não! Não, porque “a verdade estava na simetria, ou seja, fundamentava-se no bom senso”. Isso quer dizer que quando você acredita veementemente em algo, aquilo acaba se tornando tão verossímil quanto real. E Briony prefere acreditar na vilania de Robbie, cometendo uma acusação injusta a partir de eventos aparentes, o que consumiria toda sua vida tentando compensar um crime indelével.
Temos assim uma obra destacada em três partes que passeiam nos limites entre a natureza da literatura e realidade, efetuando um arrojo metalingüístico de tirar o fôlego. Em todas elas o leitor é instigado pela sutileza das palavras. A beleza dos sentidos. A complexidade dos pensamentos de cada personagem, a partir daquele verão de 1935. ”A era das respostas definidas havia terminado. Como também a era dos personagens e dos enredos.[...]O que a interessava era o pensamento, a percepção, as sensações, a mente consciente como um rio atravessando o tempo, e o objetivo era representar o movimento da consciência, bem como todos os afluentes que a engrossavam e os obstáculos que a desviavam de seu curso”.
Ian McEwan propõe o estilo onde diferentes pontos de vista enredam a trama, culminando num suntuoso desnudamento de personalidades e, mais que isso, de almas. O apelo visual transcrito pelo autor britânico induz o leitor não só a imaginar cada cena detalhada, como a se perder nas emoções emaranhadas, nos sonhos perdidos e em tentativas frustradas. Como na segunda parte, onde uma inquietação constante acomete o leitor diante do terror da guerra. Chega a doer a esperança estéril de voltar para casa, de recomeçar.
Mas é a culpa, a culpa de Briony Tallis que provoca as divagações mais lindas em todo o livro, o que pode ser uma via de mão dupla, já que ela não fica aquém de uma simples personagem. Em algum momento o leitor se depara, não com um narrador, mas, com a narradora de sua própria história. Por isso as insinuações, antecipações, metáforas. O que distingue o real da ficção vem riscado numa linha tênue ao que poderia ter sido, profuso na metalinguagem do texto. Um verbo conjugado no futuro do pretérito. Futuro este cuja expiação de uma falta move todo um ser por absolvição e a um desfecho insólito ao constatar que “o problema desses cinqüenta e nove anos é este: como pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus?[...]Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo”.