spoiler visualizarRick Shandler 19/06/2024
O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
Tenho criado um certo apreço inusitado com a leitura de clássicos. Ler um clássico é uma experiência de leitura diferente, já abrimos o livro com uma série de expectativas. Ora, estamos falando de um livro que passou pelo crivo do tempo. Teve sucesso de crítica, vendeu bem, muitas pessoas leram e aprovaram a leitura, tanto é que o livro segue sendo lido. Lemos um clássico sabendo que este livro já tem uma comunidade de leitores com os quais poderemos discutir a obra após a leitura. Lemos um clássico já amparados por uma série de referências e muitas vezes já tendo uma boa noção do enredo. Agora, o que tem me provocado em cada leitura de clássicos é a capacidade que estes livros tem de nos surpreender. Eu inicio a leitura de um clássico achando que já sei quase tudo o que o livro trata. Na maioria das vezes termino a leitura percebendo que estava completamente errado. Foi assim com O retrato de Dorian Gray.
Um jovem de beleza tão notória quanto a sua vaidade possui um retrato seu pintado e, através de um obscuro pacto, consegue com que seu retrato envelheça em seu lugar. Essa é a história que eu julgava já conhecer de Dorian gray. Qual é o meu espanto ao abrir o livro e perceber que não é bem assim? Dorian não era vaidoso, não firmou qualquer pacto e o pior, seu quadro não simplesmente “envelhecia”. Parece que a história que me contaram não foi a mesma que eu acabei por ler no livro. E ainda bem que eu li o livro, porque ele é muito melhor, nos brindado com ideias, passagens, diálogos e personagens que são verdadeiras obras de arte, de por inveja ao famigerado retrato. A começar pelo próprio Dorian Gray. No início do livro somos apresentados a um personagem que contrasta com a ideia que temos de Dorian Gray. Sim, estamos falando de um jovem de uma beleza ímpar, mas toda a vaidade, toda maldade, todo egocentrismo que associamos a este personagem não estão lá ainda. Dorian era um jovem frívolo, superficial, quem sabe um pouco arrogante. Dorian era um Narciso antes de ver seu reflexo. Porém, Dorian muda, e não é ao ver seu reflexo na água que ele muda. Toda vaidade, toda malícia, toda perversão é desperta em Dorian por um dos mais incríveis personagens que a literatura já nos agraciou: Lorde Henry Wotton.
Lorde Henry é a expressão máxima da lábia, da sedução, da perversão. Ele encanta Dorian Gray e nós leitores também. Não só encanta, Lorde Henry no provoca, nos convence de suas ideias e nos incita a prática-las. Ele vê em Dorian Gray um belo pedaço de mármore de onde ele tira um Davi de dar inveja a Michelangelo. Os diálogos entre Lorde Henry e Dorian são o auge do livro, neles Henry constrói uma argumentação tão profunda e tão bem encadeada que fica difícil de se desvencilhar das suas ideias, as quais são um verdadeiro culto do belo, do prazer, da luxúria. Sem entraves, sem limites, sem hiprocrisia, sem qualquer receio ou vergonha. Os problemas no discurso de Lorde Henry são evidentes, não tem como não perceber o narcisismo, a leviandade e até mesmo a misoginia implícita, a questão é a forma irresistível com que ele vende seu discurso. O pobre Dorian não teve a menor chance e comprou o ideal de vida de Lorde Henry. E é ai que surge minha primeira grande surpresa com o livro, Dorian Gray está no polo passivo da trama, seu grande erro foi ter se deixado levar. Não há nem mesmo um "pacto com Mefistófeles”, sua inusitada relação com o quadro que dá origem ao título do livro surge simplesmente de palavras jogadas ao vento, não foi algo que ele ativamente buscou.
O quadro foi a minha outra grande surpresa com o livro. O retrato não se incumbe simplesmente de absorver o envelhecimento de Dorian, mas sim toda sua maldade. A primeira mudança no quadro não foi um cabelo branco, nem mesmo uma ruga. Foi uma expressão. “A expressão estranha, porém, que notara no rosto do retrato, parecia permanecer, ainda mais intensa. A luz do dia, tremulante, ardente exibiu-lhe as linhas da crueldade ao redor da boca, com a clareza de quem olha no espelho depois de ter cometido algo horrível”. Dorian, mais do que não envelhecer, conseguiu um salvo-conduto para trilhar seu caminho, partindo de toda pureza e inocência que o caracterizavam para sua nova persona de pura devassidão, tudo isso “mantendo as aparências”. Ou seja, as camadas criadas por Oscar Wilde neste livro são muito mais complexas do que uma história de um homem que não envelhece. Dorian é capaz de cometer a atrocidade que bem entender, olhar no espelho e não ver nenhuma mudança. Sua culpa, sua consciência estão extirpadas desde que seu retrato siga distante dos olhos alheios. Esta relação de Dorian com seu quadro abre margem para uma série de interpretações desde questões psicológicas a questões filosóficas e cabe a cada leitor tirar as suas próprias conclusões.
O retrato de Dorian Gray é uma obra prima. Um clássico repleto de diferentes camadas e capaz de virar os séculos sem perder seu encanto, sua beleza e seu poder de seduzir e surpreender leitores. Parece que não era só Dorian Gray que não envelhecia, seu livro também não envelheceu. Tem que ler.