Carous
16/02/2019Gatilho: estupro, abuso de drogas
Eu bem queria ter dado uma nota melhor ao livro porque adorei a ideia de Brittany de escrever aventuras dos descendentes de Sherlock Holmes e John Watson e o texto ela é maravilhoso. Também amei James Watson e seu humor. Mas não dá para engolir a Charlotte. Chata, arrogante, egoísta. Ela é exatamente como seu tataravô e isso não é elogio.
Com o fim da leitura, percebi que Elementary se mantém como a única obra baseada nos personagens de sir Arthur Conan Doyle em que o criador do seriado tenta equilibrar a relação entre Holmes e Watson. Ambos personagens possuem as mesmas características (e defeitos) das histórias originais; Sherlock é arrogante e Watson é mais sensata. A diferença é que o detetive pode ser grosseiro com a puta que o pariu, mas não com sua parceira ou seus colegas e trabalho porque senão eles vão dar uma resposta atravessada. O motivo? A perspicácia de Sherlock simplesmente não é desculpa para ele tratar as outras pessoas mal.
Por que eu estou gastando linhas defendendo uma série que o fandom raiz de Sherlock Holmes odeia tanto numa resenha de livro? Porque com a conscientização de relações abusivas, fico surpresa de ver quanta gente ainda usa esse modelo de ~amizade~ nas suas histórias ou quando precisa citar uma relação platônica saudável, duradoura e verdadeira. A amizade entre o detetive e o médico só é duradoura e isso deve ser porque John Watson ainda não se deu conta de que não tem amor próprio.
Agora ela poderia ter criado uma Charlotte Holmes e James Watson mais originais ao invés de simplesmente copiar os traços de seus tataravós. Ainda assim... quanto ao James, lamentei a falta de qualidades próprias, mas ele é um personagem cativante e tem um humor maravilhoso. Me identifiquei com algumas coisas que ele compartilhava para o leitor. O livro é narrado por ele, uma espécie de diário tal qual seu antepassado fazia, principalmente depois que passou a trabalhar em parceria com o detetive. Assim, James tem uma vantagem sobre Charlotte: mais de 300 páginas para ele nos mostrar como é de verdade.
Para Charlotte, a oportunidade de conhecê-la melhor aparece somente no epílogo que é narrado por ela. Para mim pareceu uma tática da escritora para desfazer qualquer má impressão que o leitor possa ter tido da personagem: sua frieza, os erros que ela cometeu que prejudicaram outras pessoas, sua prepotência. Claramente Brittany queria despertar a empatia do leitor por Charlotte (inclusive quando usou a carta "estupro"). Mas too little, too late. Não adiantou nada. A personagem apresentada no epílogo é a mesma burguesa metida do resto da história.
Como dito antes, a dinâmica entre Charlotte e James é a mesma de Sherlock e John - e nada a ver com a sinopse do livro. Ela se acha superior a todo mundo porque consegue detectar quando as pessoas mentem, encontrar pistas nos lugares mais improváveis, ligar pontos e ajudar a polícia a encerrar um caso. Tudo isso seria admirável não fosse a informação de que ela foi TREINADA para ser assim por sua família. Na verdade, todos os Holmes desde Sherlock são submetidos a testes para serem os fodões na arte da investigação. E por quê? Tudo por causa do sobrenome que eles carregam. Pouco a ver com nascerem com aptidão para serem detetives. Deve ser um fardo grande ser obrigado a ser tão bom quanto seu tataravô para não decepcionar as pessoas quando elas tomam conhecimento de que você e Sherlock Holmes são parentes.
Já a família Watson é mais normal que a família Holmes. Fantástico que somos parentes de John Watson, mas cada ser humano é de um jeito e lógico que não vamos submeter ninguém a ser como ele. Que doideira...! Talvez por isso as duas famílias tenham se afastados. Porque os Holmes são frios e esnobes, e os Watsons são simpáticos.
James apenas fantasiava que era BFF de Charlotte, mas nunca viu as fuças da garota até ser transferido de escola (casa e país). James apenas fantasiava que era o fodão, mas na realidade ele não passa de um adolescente de 17 anos como os outros.
Sério, temos um problema muito grande quando simpatizamos mais com o criminoso do que com quem está investigando o crime. Eu lamentei a violência que Charlotte sofreu, mas não consegui suportar essa garota. E não achei nada bonito o quanto ela maltratava James. Tudo para manter a dinâmica Holmes-Watson como era no passado. Charlotte para mim é uma personagem egoísta, fria e drogada cujo comportamento foi normalizado só porque era idêntico ao de Sherlock Holmes como se isso fosse algo a ser admirado. Errou feio, errou rude. O irmão não fica atrás, os pais também não. Uma família de gente detestável.
E para completar o ciclo de erros de Brittany, ainda teve ensaio de um romance entre Charlotte e James. Estou aguardando a onda de protesto e fúria do fandom de Sherlock Holmes, tal qual teve quando John Watson virou Joan Watson em Elementary. Não teve nada com romance (até porque nem precisaria: gays existem, galera), mas como a série ganhou hate das pessoas. Então não espero menos que isso para este livro.
Apesar de tanta indignação quanto à Charlotte, eu continuo com vontade de ler o segundo volume da história torcendo para que Brittany tenha amenizado esses traços da personagem.