paulofonsecamj 27/01/2021
O tapa na cara de Maternidade
Foi um desafio, acho nada mais justo do que começar essa resenha exatamente com essa frase pois de fato foi: um desafio! Este livro me foi dado a partir da proposição de leitura conjunta feita pelo clube de leitura da livraria do Belas Artes e mais uma vez um desafiador presente!
Inicialmente me propus a lê-lo única e exclusivamente de forma empática e no meu não-lugar, uma vez que na figura de maternidade de fato eu não tenha lugar de fala. Confesso que demorei alguns dias e alguns debates pra poder ?engolir? melhor essa leitura e trazer conceitos e ideias mais amplos pro meu discernimento e entendimento da mesma, como disse brilhantemente bem Bruna, uma de nossas livreiras: para alguns livros é necessário se ler de peito aberto, sofrer e chorar junto; e agora eu com um pouco mais de clareza e um pouco mais de tempo tenho noção de como foi me aventurar nessa aventura proposta como diário/livro aberto de Sheila Heti e de fato foi incrível.
O livro vem contar como uma espécie de confessionário o que na visão da autora vem a ser os últimos meses da sua fertilidade e o quanto a decisão por ter ou não filhos com esse cronômetro final ligado vem a ser uma grande questão em sua vida. Por meio de uma narrativa que por vezes coloca as decisões importantes à mercè do destino, por vezes se confabula com seus pesadelos e por outras vezes em suas ligações e conversas com diversas pessoas, Sheila vai traçando seus dias e suas decisões, nos deixando a par de cada angústia e de cada peso pela decisão entre o sim ou não tomada, conseguindo grandiosamente nos fazer por tantas vezes sofrer, se entediar ou reprimir por esse questionamento: ter ou não filhos?
O que era pra ser um assunto amplamente pessoal se transforma em grandes questionamentos e proposições quase que universais, principalmente no que se diz respeito ao corpo das mulheres e ?papeis sociais? impostos às mesmas, tirando o leitor da voz passiva e o trazendo junto as suas angústias e delírios em voz ativa, fazendo-o participar do jogo de culpas e redenções dessa escolha que deveria ser única e exclusivamente pessoal mas, que tantas vezes é carregada de peso sobre esta decisão, como se essa mesma fosse uma dívida da mulher como ser humano para a sociedade.
Os questionamentos vão muito além do fato da escolha de ser ou não mãe, eles encontram com as condenações da educação encontradas na infância, com os desejos condenatórios de cumprir certos papéis sociais como casar, ter um bom emprego, ganhar bem, garantir sucesso profissional, emocional, afetivo e de fato ser mãe, em uma visão ampla sobre os caminhos nos quais escolhemos para as nossas vidas e quais os caminhos nossa própria vida os escolhe.
Este livro abriu de fato e sem retorno minha cabeça sobre a questão da escolha entre escolher se ter ou não um filho, do quão ampla e angustiante esta mesma questão pode vir a ser. Podendo em partes ser uma escolha egoísta, onde se há ainda que involuntariamente a decisão de um novo ser humano em continuar sua existência ? com o desejo de deixar algo de si no mundo que contemple a sua imagem, semelhança e idealismos. Por outras vezes um desejo de completude e parceria, naqueles que desejam filhos por sempre terem um falso ?pertencimento? de alguém no mundo. E por vezes até mesmo um papel social, onde a sociedade entende que um casal hetero normativo jamais tem a sua completude se não tem filho (papel social esse que nunca ? ou quase ? é imposto a um casal LGBTQIA+, uma vez que para estes casais o fato de não se ter filhos é aceito e não dado como uma necessária falta no relacionamento ou mesmo distinção de alegria e completude).
É necessário lembrar que a decisão de se ter filhos implica num desejo de se tornar mãe (ou pai) mas apenas no papel que lhe cabe, o desejo deve ser ao pertencimento dessa figura, que educa, que entende, que ensina e acima de tudo: que acolhe, e não no pertencimento da outra pessoa (o filho) uma vez que essa outra também sendo uma pessoa terá seus próprios desejos, escolhas e suas próprias decisões diante do mundo..
Por fim, cito uma das passagens que mais me marcou do livro, finalizando essa análise a partir da brilhante fala em entrelinhas dita por Sheila: ?Em um certo dia depois da consulta caminhei pela rua e liguei para Tereza, conversei com ela a respeito das minhas inquietações a respeito dos caminhos que escolhi ou não trilhar e ela disse que: todo mundo passa por isso mas, quase sempre quando olhamos nossa vida em retrospectiva de forma amorosa vemos que as escolhas que fizemos e os caminhos que trilhamos foram os certos, ela disse que não era uma questão de escolher uma vida no lugar de outra mas, perceber qual vida te escolheu?.