@retratodaleitora 19/06/2019Sempre tive uma curiosidade enorme quando o assunto é maternidade. Não sou mãe e não sei se quero ser, mas não quero que seja um eterno "talvez", ou que seja ditado por terceiros ou pelo meu próprio corpo. Quero poder dizer "sim, quero ter filhos" ou "não, não quero ter filhos" sem dúvida, sem exitar, e com meus motivos na ponta da língua; menos pelos outros e mais por mim mesma. Mas pense em uma questão difícil, essa da maternidade! Enquanto fico nessa dúvida vou lendo tudo o que cai nas minhas mãos sobre o tema... "Maternidade" da escritora canadense Sheila Heti foi desses livros que aparecem de surpresa e, já pelo título (não li a sinopse) sabia que o leria.
Acontece que eu não sabia que era um romance. Ou seja, li 78% do livro acreditando se tratar de um não-ficção. Talvez por ser uma narrativa tão livre, tão pessoal, tão com cara de diário, e com uma protagonista escritora, canadense, na faixa dos quarenta anos, com outros livros publicados.... Só caí na real quando li umas coisas mais surreais e fui ler FINALMENTE a sinopse. E estava lá: romance. Fiquei surpresa, chateada comigo mesma e com o fato de que teria que diminuir a nota, pois avaliando um livro de romance, uma ficção de 300 páginas, não foi a mesma coisa.
"Nós direcionamos nosso amor para trás, para que a vida possa fazer sentido, para dar beleza e significado à vida de nossas mães"
Então aqui conhecemos uma ~personagem~ que não sabe se quer ter filhos e resolve escrever sobre essa dúvida, investigar lá no fundo os porquês, seus motivos, seus relacionamentos, sua relação com sua mãe, ancestralidade, corpo, alma, desejo, mitologia, questões hormonais. É um livro que realmente vai fundo, e gostei muito das reflexões que ele trouxe; acabei me fazendo várias perguntas também e, ao longo da leitura, me surpreendendo com as respostas.
"O tempo está sempre se esgotando para as mulheres. Os homens parecem viver em um universo sem tempo. Na dimensão dos homens, não há tempo - só espaço. Imagine viver no universo do espaço, não do tempo! (...) A vida de uma mulher dura mais ou menos trinta anos. Parece que, durante esses trinta anos - dos catorze até os quarenta e quatro - tudo precisa ser feito. Ela precisa achar um homem, fazer bebês, começar e impulsionar a sua carreira, evitar doenças e juntar dinheiro o bastante, em uma conta separada, para que seu marido não possa detonar as suas economias. Trinta anos não é tempo suficiente para viver uma vida toda! (...) Se eu fizer apenas uma coisa com o meu tempo, certamente essa coisa depois será o meu martírio."
É uma leitura muito fluída, interessante, com temas importantes. Abrange muita coisa, não é tão bem organizado, mas muito inteligente ao fazer o leitor pensar coisas que não são tão abordadas na literatura: menstruação, tpm (ou seria transtorno disfórico pré-menstrual?), feminilidade, relações conflituosas mãe&filha, carreira&maternidade e MUITO mais. É um livro sobre maternidade escrito por uma mulher branca sobre uma mulher branca escritora, seria uma autoficção? Até onde a atora é personagem e vice versa. Fiquei curiosa!
Como eu disse, é um livro que toca em diversos pontos interessantíssimos e sim, leitura muitíssimo válida para quem como eu tem essa curiosidade, se interessa pelo tema e entendam (querem, precisam entender) que existem mulheres que não querem ter filhos, e respeitem isso.
A escrita Sheila Heti vai estar presente na FLIP 2019 e gostaria MUITO de conhecê-la, saber mais sobre seu trabalho, entender melhor esse livro estranho, e muito bom (como não ficção rs) sobre um tema que adoro.
Recomendo a leitura? Se se interessa pelo tema, sim. Só recomendo que comecem tendo em vista que é um romance com toques de autobiografia... até onde entendi. Foi um livro confuso? Foi. Acho que ficou bem claro nessa resenha/desabafo, e o porquê de ser importante as vezes passar os olhos por sinopses e pegar umas palavras-chave que podem fazer total diferença.
"Eu sei que quanto mais eu trabalho neste livro, menor se torna a possibilidade de que eu tenha um filho. Talvez seja por isso que o escrevo - para conseguir atravessar até a outra margem, sozinha e sem filhos. Este é um livro profilático. Este livro é a fronteira que estou erguendo entre mim mesma e a realidade de um filho. Talvez o que eu esteja tentando fazer, ao escrever isso, seja construir um bote que me levará até certo ponto por certo tempo, até que as minhas perguntas não possam mais ser feitas. Este livro é um bote salva-vidas para me levar até lá. Por mim, isso é tudo que ele precisa ser - não um grande transatlântico, só uma balsa. Ele pode se despedaçar completamente depois que eu desembarcar na outra margem."
"A minha falta de experiência maternal não é uma experiência da maternidade. Ou é? Posso chamá-la de maternidade também?"
"Viver de um jeito não é uma crítica a todos os outros jeitos de viver. Será que essa é a ameaça que a mulher sem filhos apresenta? Ainda assim, a mulher sem filhos não está dizendo que nenhuma mulher deveria ter filhos, ou que você - mulher empurrando carrinho de bebê - fez a escolha errada. A decisão que ela toma para sua vida não é um discurso sobre a sua. A vida de uma pessoa não é um discurso político, ou geral, sobre como todas as vidas devem ser. Outras vidas deveriam correr paralelamente à nossa sem qualquer ameaça ou juízo."
site:
https://www.instagram.com/mydearvangogh/