Luiza - @oluniverso 18/04/2020Resenha publicada originalmente no blog LivriajandoEm Maternidade, somos apresentados a uma mulher que está chegando perto dos quarenta anos, tem um companheiro chamado Miles e não gerou filhos. Apesar de passar a maior parte do tempo criando histórias e refletindo (a profissão da protagonista é ser escritora), ela não consegue tirar da cabeça a ideia de ter ou não ter um bebê. Afinal, parece que todas as suas amigas estão pensando em realmente ter uma criança ou já a tiveram. Mas, será que ela quer realmente passar por essa experiência?
Para tentar responder essa dúvida (e depois percebemos que talvez não para isso), a protagonista, com o apoio do marido, tem a ideia de escrever seus pensamentos sobre o assunto para, quando o livro acabar, ela realmente tomar sua decisão final. E é assim que nasce o livro Maternidade: ele é o resultado das experiências da protagonista.
O nome dela em nenhum momento é revelado, o que nos leva a pensar que talvez estejamos falando de parte da experiência da própria Sheila Heti. De qualquer forma, o livro começa com um jogo de perguntas e respostas feito com moedas, em que duas ou três caras significam sim e duas ou três coroas significam não. As perguntas são desde reflexivas a até comuns, como "Este livro é uma boa ideia?". "Sim". A autora garante que não influenciou as respostas e respeitou o uso das moedas.
Depois, ela vai acrescentando a isso suas próprias ideias, reflexões e acontecimentos diários, da sua rotina mesmo, para adentrar no assunto: como quando visita suas amigas grávidas ou que já têm filhos, quando assiste a um filme ou quando lê um livro. Essa obra me lembrou muito aquela situação curiosa que já deve ter acontecido com todo mundo: quando não sabemos de algo, não reparamos nesse algo. Mas, quando lidamos com ele pela primeira vez e percebemos que existe, ele começa a aparecer em todos os lugares e nos sentimos rodeados. É assim que vi a maternidade acontecer para a protagonista.
A não maternidade: o assunto chave da narrativa
Embora os relatos da protagonista não sejam expostos de forma cronológica, dá para perceber que ela passou vários anos refletindo sobre ser ou não ser mãe. Ou talvez adiando essa decisão.
Isso causa diversos níveis de reflexão na personagem, além de crises existenciais e, em uma parte do livro, conflitos muito grandes com o companheiro, que desde o início se posiciona como uma pessoa que não vai decidir sobre a questão, já que ele já tem uma filha e reconhece que essa deve ser uma escolha feminina. Apesar de ela às vezes não reconhecer, Miles a apoia e está do lado dela em qualquer situação.
"Eu via que outras pessoas já estavam cuidando deste assunto - da maternidade. Se os outros já estavam fazendo isso, então eu não precisava fazer" - Pág. 108.
Em alguns momentos, considerei as razões que a protagonista aponta para não ser mãe como exageradas demais e até um pouco simplistas, mas em outros, ela traz reflexões importantíssimas, como a das mulheres que não querem ser mães, mas adotam uma criança; as mulheres que não querem ser mães, mas contribuem com o mundo de alguma outra forma, como com a escrita e com a sua inteligência, as mulheres que não querem ser mães porque acham que nasceram apenas para terem o papel de filhas e cuidarem das suas próprias mães, etc.
Falar sobre a não maternidade leva inclusive a autora a refletir sobre o patriarcado, sobre a pressão social que as mulheres sofrem (quando, por exemplo, são instigadas demais a terem filhos, mas também não podem tomar a decisão de abortar, porque parece que isso já é demais - o ponto aqui é que de alguma forma sempre há a necessidade de controlar o corpo feminino, seja puxando a corda para um lado ou para o outro) e sobre nossos papéis como seres femininos.
"Viver de um jeito não é uma crítica a todos os outros jeitos de viver. Será que essa é a ameaça que a mulher sem filhos apresenta? Ainda assim, a mulher sem filhos não está dizendo que nenhuma mulher deveria ter filhos, ou que você - mulher empurrando o carrinho de bebê - fez a escolha errada. A decisão que ela toma para a sua vida não é um discurso sobre a sua. A vida de uma pessoa não é um discurso político, ou geral, sobre como todas as vidas devem ser. Outras vidas deveriam correr paralelamente à nossa sem qualquer ameaça ou juízo". - Pág. 148/149.
Enxerguei a reflexão da autora como importante, pela coragem de expor em uma obra um assunto delicado e que precisa sim ser discutido. Além disso, é muito importante que as mulheres reflitam sobre o fato de desejarem ou não ser mães, pois uma criança é uma responsabilidade e precisa de cuidados, atenção e outras necessidades que às vezes não queremos ou não podemos prover, e isso é normal.
Maternidade e a autoficção
Se você olhar a ficha catalográfica de Maternidade, vai perceber que o livro se enquadra em Ficção e/ou Ficção canadense. Ou seja, ele não necessariamente tem a obrigação de apresentar fatos da realidade e representar a vida de alguém que já existe. Porém, o formato do livro, a escrita e informações reveladas pela própria autora nos fazem crer que a obra poderia se encaixar facilmente no que é definido como autoficção.
Para entender melhor este termo, li o capítulo "A autoficção e os limites do eu", do livro Mutações da Literatura no século XXI, de Leyla Perrone Moisés, sobre o assunto. Descobri que o termo foi criado por Serge Doubrovsky, em 1977, na França. Segundo Leyla, os livros de autoficção da época costumavam apresentar as experiências de vida do autor, seus pensamentos e sentimentos.
"Não eram diários, porque não registravam os acontecimentos dia a dia, em ordem cronológica. Não eram autobiografias, porque não narravam a vida inteira do autor, mas apenas alguns momentos desta. Não eram confissões, porque não tinham nenhum objetivo de autojustificação e nenhum caráter purgativo" - 66% do livro no Kindle.
Além disso, mais para frente, Leyla expõe que a autoficção não é necessariamente egoísta ou descartável, por falar de uma pessoa específica. Ela pode ser uma forma do autor se assemelhar aos seus leitores e assim, ajudá-los a encontrar respostas que faltam neles mesmos. Há aqueles que defendem que a autoficção é totalmente verdadeira e todos os fatos narrados são reais; e também há os que acreditam que tudo o que é autoficção não passa de uma invenção fantasiosa.
A boa notícia (e a que eu, pessoalmente, estou mais propensa a acreditar) é que existe uma linha entre esses dois extremos que explica que, como a linguística é um sistema de significados que representam a realidade, a linguagem verbal se torna uma representação convencional do que quer que seja e, por tanto, é sempre infiel e não realista (o que não significa que não pode ter traços de realidade).
Vocês já viram aquela imagem que diz "isto não é um cachimbo", porque ele é a representação de alguém sobre o que é um cachimbo? Com os livros de autoficção aplicaria-se a mesma linha de raciocínio: como o real não é palpável, ele seria representado, neste caso, pelos livros de autoficção. Além disso, é notável que mesmo a narrativa de uma história real pode ter algum ou outro ponto de vista ressaltado de acordo com os interesses do autor. Ele pode maximizar um ângulo de visão, dar ênfase a fatos que para outras pessoas não seriam tão importantes e expor os acontecimentos em uma cronologia diferente para defender uma ideia.
Por fim, segundo o livro de Leyla, existem algumas características básicas para que um livro se enquadre dentro da autoficção, que são:
O narrador deve ter o mesmo nome do autor;
O eu da narrativa deve se buscar e se autoquestionar com honestidade;
O narrador deve revelar uma verdade interior em sua escrita;
Ele deve levar em conta a questão ética, pois não é possível falar de si mesmo sem citar aqueles que o cercam, como a família e o(a) companheiro(a).
Por mais que Sheila não tenha dito explicitamente que a história é sobre ela, também não é revelado em nenhum momento qual é o nome da personagem principal de Maternidade, o que nos deixa numa grande dúvida. Contudo, e apesar de Sheila ter dito que "essa história tem mais imaginação e invenção" que o seu primeiro livro, How Should a Person Be? (Como uma pessoa deveria ser?, em tradução livre), não há como não se questionar se muitas das indagações da personagem principal de Maternidade não são as mesmas de Sheila.
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https://www.livriajando.com.br/2020/04/resenha-maternidade-de-sheila-heti.html