Gramatura Alta 23/06/2019
http://gettub.com.br/2019/06/23/do-que-estamos-falando-quando-falamos-de-estupro/
DO QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE ESTUPRO é um lançamento da editora Vestígio, escrito por Sohaila Abdulali, pesquisadora e sobrevivente de um estupro coletivo que sofreu aos 17 anos, que trata de uma realidade tão polêmica e velada: a cultura do estupro!
No primeiro capítulo, intitulado “Quem sou eu para falar?“, a autora conta sua história e como sofreu um estupro coletivo pouco tempo após se mudar para os Estados Unidos com a família . E, por incrível que pareça, ela fala sobre isso de modo tão simples, que nos causa estranhamento. Como assim ela quase morreu após ser violentada por quatro homens e fala como se não fosse nada demais? Esse foi meu primeiro pensamento, mas, aos poucos, compreendemos suas ideias e sua história de superação.
Claro que ela passou por momentos terríveis, mas o estupro não a define como mulher e não altera seu valor. O mais interessante é que, ao longo do livro, o foco não é mantido na violência sofrida pelas vítimas, e sim no que acontece com essa pessoa depois: o trauma, o apoio (ou falta dele) de pessoas próximas, modos de enfrentamento…
Após a eleição presidencial dos Estados Unidos que elegeu Donald Trump, muitas mulheres com histórico de violência reagiram fortemente à ideia de serem representadas por um homem que disse publicamente: “Agarre-as pela buceta“. E por que essa revolta? Mais uma vez em suas vidas, alguém que deveria protegê-las e representa-las, usava do poder para abusar delas. Apesar da triste eleição de um candidato extremamente machista, isso colaborou com o projeto #MeToo, criado em 2016 nas redes sociais para denunciar assédios, e essa hashtag é compartilhada por homens e mulheres que já sofreram algum tipo de agressão sexual.
Confesso que, para mim, a violência sexual é o pior dos crimes, me causa náuseas ver no noticiário incontáveis mulheres sendo machucadas por familiares, maridos, estranhos… E por quê? Por raiva da crueldade do estuprador, seu desprezo com os sentimentos da vítima; eles seguem suas vidas normalmente e não dão a mínima. O estupro é o único crime que causa tanta revolta na sociedade ao ponto das pessoas acharem que os homens devam ser castigados de maneira cruel e torturante e que a prisão não é suficiente. Sempre me indignou ouvir opiniões que culpavam as vítimas por sua vestimenta, por estarem fora de casa à noite, por beberem numa balada ou por estarem em local indevido, por exemplo; se alguém é roubado na rua, ninguém culpa o pobre coitado que perdeu o celular e o relógio caro, mas quando se trata de uma mulher violentada, eles julgam e tratam-na como se ela tivesse merecido. Culpar a vítima vai contra todo o conceito de colocar a responsabilidade no agressor!
Agressões sexuais de profissionais do sexo são bastante comuns, por serem vistas como promíscuas e não merecedoras de respeito, já que são pagas para fazer “coisas sujas“, o que é uma ideia extremamente preconceituosa da sociedade do século XXI.
Outro extremo, são os casos de mulheres violentadas pelos próprios maridos, e pior ainda, homens que se casam com a pessoa que estupraram a fim de não serem penalizados, o que é muito comum no Kuwait. Uma vítima enfrenta tantas dificuldades para seguir sua vida após o trauma, imagine ter que viver sob o mesmo teto que seu estuprador…
A narrativa evidencia a forma como as vítimas se sentem após a violência, principalmente quanto a forma que são desacreditadas por profissionais pagos para ajuda-las. Um dos fatores que colaboram para que essas pessoas escondam o ocorrido, é a ideia de vitimização que muitos têm, como se a mulher quisesse apenas chamar atenção e fingir fragilidade; elas enfrentam grande descrédito, escárnio ou até excitação sexual. Mas quando você conta a alguém a sua história para denunciar seu estuprador, você reassume o controle, deixando de ser “somente” a vítima. Assim, consegue apoio físico e psicológico para se recuperar e seguir em frente!
Segundo Abdulali, a mulher não tem nenhuma obrigação, após o evento, a não ser sobreviver a ele… Mas esse relato vai contra a impunidade e pode trazer uma mudança real. Porém, existem duas vertentes: se você denuncia, é uma vítima indefesa que deseja compaixão; e caso você se mostre forte, significa que não foi tão ruim assim, então, para quê falar sobre isso e arruinar a vida daquele pobre homem?
Muitas vezes nos questionamos sobre o motivo do silêncio dessas pessoas após o crime. Por que não denunciam? Todos possuem algum trauma, alguma situação difícil de expor por diversos motivos; a escritora expressou de forma tão clara isso nesse parágrafo que acho primordial compartilhar: “Por que calamos? A resposta fácil é ‘por vergonha’, e com frequência a razão é essa mesmo. Acabamos achando que a falha foi nossa, por estarmos disponíveis ou vulneráveis, ou pela ingenuidade de não ter percebido a tempo. Em todo o mundo, nos culpamos, incapazes de considerar que foi outro ser humano que cometeu o crime. É mais fácil sentir-se envergonhada do que aceitar que alguém violou nossa intimidade da maneira mais perversa, e que não fomos capazes de fazer nada.“. Ler esse trecho me doeu, pois verbaliza de forma direta o que tantas pessoas enfrentam diariamente.
Como podemos ajudar uma vítima? Oferecendo apoio incondicional, sem julgamentos e rejeições. Dessa forma, o indivíduo não se sentirá culpado, terá com quem conversar abertamente, além de se sentir aceito por alguém que ama. Existem pessoas maravilhosas nesse mundo, e várias delas se sensibilizam com as vítimas e oferecem ajuda a fim de melhorar suas vidas. Ajude seu próximo e tenha empatia! Seja uma pessoa incrível!
A escrita de Sohaila é leve e descontraída, mas não se deixe enganar. Os temas abordados são pesados e merecem reflexão, principalmente por serem a realidade atual e porque o estupro é perturbador. A leitura é bem tranquila devido ao tipo de narrativa, porém é permeada por fatos asquerosos que geram incômodo e aflição; nos faz pensar sobre a crueldade do ser humano, até onde ele é capaz de chegar para conseguir o que quer.
Essa obra é tão valiosa, preenchida por informações muito importantes e provocadora de reflexões valiosas! Todo mundo deveria ler e pensar um pouco sobre o mundo ao seu redor e a cultura do estupro. E para finalizar esta resenha, deixo um trecho do livro: “Como espécie, somos impressionantes. Então, por que é tão difícil descobrir onde é que você deve e onde não deve pôr o seu pênis? Ou compreender que ninguém pede para ser estuprado?“.
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