Raphael 27/07/2021Um romance necessário!La Casa de los Espíritus, de Isabel Allende
Editora Plaza & Janes, 560 páginas.
Nota: 5,0/5,0 – Melhor leitura do ano até aqui!
O sucesso de Isabel Allende é indiscutível. Publicou mais de 20 livros, foi traduzida para 42 idiomas e é, hoje, a escritora de língua espanhola mais lida do mundo. Com uma carreira tão promissora, fico pensando quão significativo é o fato de que “La Casa de los Espíritus”, o seu romance de estreia, publicado em 1982, siga sendo o mais festejado de seus livros. Não é para menos! Que estreia foi essa, senhoras e senhores! Isabel Allende ingressou para a cena cultural contemporânea como que metendo o pé na porta...
“La Casa de los Espíritus” é uma grande saga familiar, que narra os sucessos da família Del Valle-Trueba ao longo de quatro gerações, tendo como pano de fundo a história do Chile ao longo do século XX, tomando em conta o contexto político, social e econômico que se desenrola até os anos 1980. Na tessitura dos destinos dessa família, somos defrontados com o poderio da república dos terratenientes (isto é, dos grandes latifundiários), com a brutal exploração e com as condições de vida subumanas de um campesinato miserável, com as primeiras tentativas de reagir ao poderio dos “mesmos de sempre”, com o embrião das primeiras organizações sindicais, com as lutas políticas e com as revoltas universitárias; contra todas as expectativas, com a vitória do socialismo democrático com a eleição de Salvador Allende; também com o golpe militar liderado por Augusto Pinochet, com a violência da ditadura, as perseguições, os fuzilamentos, a tortura, os estupros...
Faço duas ressalvas.
A primeira: apesar de tudo se passar no Chile, em nenhum momento a narrativa diz que as coisas se passam no Chile. Nesse Chile que não se diz que é o Chile, Salvador Allende não é Salvador Allende. É o Candidato Socialista, depois referido como o Presidente ou ainda como o Companheiro Presidente. Tampouco Pablo Neruda é Pablo Neruda. É o Poeta. São dados todos os elementos, na narrativa, para que o leitor conclua que está no Chile, mas os narradores não o declaram em nenhum momento.
A segunda: o livro é romance histórico, mas não é apenas isso. Tributário do Realismo mágico, o livro nos abre a porta à casa dos Del Valle-Trueba, que é também um palco frequente do sobrenatural, do místico, do maravilhoso. Como sugere o nome do romance, ali Espíritos transitam entre os vivos e com eles se comunicam; cadeiras e saleiros levitam; pianos fechados ecoam suas melodias; presságios e vislumbres do futuro estão na ordem do dia. O Inexplicável, com alguma frequência, quebra a cadeia ordinária dos fatos.
Sobre a relação com o realismo mágico, devo dizer que a todo momento o livro me remeteu muito a Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Não apenas por se tratarem, ambos, de sagas familiares ou por esta aludida relação com o citado movimento literário. Mas também por traços de estilo e recursos narrativos comuns, como por exemplo o hábito do narrador antecipar ao leitor aquilo que só irá acontecer muitas e muitas páginas depois.
Por falar nos narradores, a obra tem dois: começo por citar Esteban Trueba, que – perdoem o meu francês e a suspensão momentânea da compostura – é um tremendo filho da [*****], que eu tive vontade de socar durante todo o livro. Filho de uma família tradicional, porém decaída, Esteban Trueba encarna o sujeito empreendedor, que trabalha duro e faz fortuna – inicialmente, na mineração; em seguida, levantando uma propriedade ruinosa que pertencia à sua família,terminando por se incorporar à classe dos terratenientes, crescendo em prestígio, poder econômico e influência política. Sobre este último ponto, Esteban se torna uma das principais figuras do Partido Conservador e, mais adiante, um bastião do anticomunismo. Violento, voluntarioso, mau caráter, machista são alguns dos seus atributos. Até mesmo aquilo que ele traz de mais virtuoso – por exemplo, o amor que sente por Clara – converte-se em algo desequilibrado pelo ciúme e pela possessividade.
A outra narradora é Alba, neta de Esteban Trueba. Encarna o espírito rebelde, não conformista, sensível às mazelas sociais e capaz de arriscar tudo para ajudar as vítimas de perseguição política. Entra em choques frequentes com o avô, apesar do amor que nutrem um pelo outro. É um dado curioso como a narrativa é construída conjuntamente por figuras que encarnam um choque geracional. E isso é muito relevante para o projeto do livro.
Como comentário final, acho que o livro é bom desde o início, mas ele cresce absurdamente a partir da eleição de Allende, seguida pelo Golpe Militar de 1973, quando a política, conquanto esteja presente ao longo de toda a narrativa, passa para o primeiro plano do romance, conduzindo a um final que produz um misto de sentimentos conflitantes, mas que tem algo de elevado, em sua beleza literária.
Adorei o livro! Recomendo demais!
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