anicca 09/10/2020
Um ensaio nítido e coerente sobre a natureza humana
Como diria Witold Gombrowicz, a arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados. Oyasumi Punpun executa tal função com maestria, pois deprime, intriga e encanta. Essa capacidade comunicativa ocorre, além do talento do mangaká, devido à ressonância que encontra no leitor. O mangá é repleto de eventos que conversam diretamente com experiências que enfrentamos, e por isso ecoa em nós.
Mas não se resume a apresentar situações aleatórias ou desconexas, antes incentiva a reflexão e a interação do sensível com o objeto. Promove o encontro do leitor com a história, consigo próprio e com o mundo. Ao acompanhar as desventuras de Punpun e de seu núcleo social, entramos em contato com partes obscuras deles, de nós mesmos e da sociedade. O movimento de entender os fatos, associá-los a passagens vividas ou a obras já consumidas e refletir sobre a própria posição no mundo abarca processos complexos e que poucas obras conseguem acessar verdadeiramente.
Falando sobre composição visual, Asano utiliza elementos quase que grotescos para se comunicar, a exemplo das entidades divinas e das várias formas assumidas por Punpun ao longo do mangá. Cada uma delas expressa particularidades referentes aos diferentes momentos de sua vida.
A narrativa por vezes esbarra no absurdo também, o que agrega à imersividade e ao carisma da história. É maleável, isto é, na presença de certas pessoas Punpun se retrai ou se mostra expansivo, e tais detalhes são imprimidos no ritmo, que fica mais lento ou frenético. Impressiona pela qualidade consistente.
A construção dos personagens é maravilhosa. É possível que o afeto por eles vá surgindo, e não por serem projeções idealizadas, por representarem o que gostaríamos de ser e não conseguimos, tornando-se assim intocáveis e celestiais. Ocorre porque as falhas, as dúvidas e os sonhos de cada um são complexos, elásticos e mundanos. São muito palpáveis.
É perceptível, por exemplo, o quanto alguns são desprovidos de amarras sociais, ao passo que outros são profundamente marcados por elas. O quanto mentem para garantir a estabilidade do frágil modelo mental que desenvolveram, seja para superar traumas ou para sobreviver. O quanto sabotam a própria felicidade por estarem convictos de que não a merecem. E como momentos de tensão podem acarretar horrores indizíveis e dos quais não se reconheciam capazes.
A primeira coisa que me ocorreu quando vi Punpun ser representado como um pássaro foi: "hmm ele se sente deslocado". Depois, concluí que seria um recurso utilizado a fim de gerar (ou facilitar a) identificação.
Porém, à medida que lia, uma referência curiosa foi feita, e a partir dela reconsiderei essas ideias. Trata-se de uma música (tsubasa wo kudasai, ou "por favor, me dê asas"), que diz: Neste imenso céu eu quero / Abrir minhas asas e voar / Para o céu livre, sem qualquer tristeza / Eu quero bater minhas asas / E ir / Eu ainda sonho com essas coisas / Que eu sonhei quando eu era pequeno. A letra dialoga diretamente com a vivência de Punpun, pois expressa o anseio pela liberdade enquanto se está agrilhoado, a vontade de realizar mas a falta de força necessária, a ânsia por um significado maior.
Punpun sempre pareceu encarcerado em si mesmo. Primeiro, porque os pais não lhe deram a devida atenção ? o que se percebe quando, em vez de oferecer apoio e conferir como se sentia, o genitor lhe oferece um telescópio de presente, como se pudesse suplantar sua ausência com aquilo. Com isso, o garoto internalizou que suas questões eram um incômodo e que precisaria lidar com elas sozinho. Depois, durante os anos seguintes, ele voluntariamente se esconde na própria concha e torna-se inacessível, pois "pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma doença" (Alejandro Jodorowsky). Essa passagem se conecta intimamente com a depressão que ele enfrenta.
Destaco Seki como meu personagem preferido. Ele é perspicaz, corajoso e profundamente cético. Questiona a influência do capitalismo sobre o desenvolvimento intelectual das pessoas, dos limites da liberdade, da efemeridade sobre nosso modo de encarar a vida, da fragilidade da existência, da falsidade que permeia boa parte das relações humanas e da necessidade de se manter as aparências.
A mãe de Punpun também me causou comoção. Não consegui superar a repulsa que desenvolvi por ela desde que a vi, mas lamentei pelas vicissitudes que embalaram seu caminho e compreendi suas incertezas. Percebo que suas atitudes, por mais danosas que tenham sido (afinal como pode um pai negligenciar o filho a ponto de fazer com que se sinta invisível?), muito provavelmente foram reflexo de uma criação disfuncional, assim como a do sr. Punyama. Sem saber como lidar consigo e sendo fruto de uma cultura que engrandece a repressão emocional, ambos se manifestavam através de explosões de raiva e violência.
Em outras palavras (e a fim de sintetizar), Inio Asano foi genial na construção de um mangá tão sensível e forte, que machuca e oferece vislumbres de esperanças em seguida, que provoca inúmeras emoções e que atira o leitor em uma jornada intimista pela mente de personagens tão profundamente humanos. A sensação que predominou em mim durante toda a leitura foi como estar diante de um despenhadeiro: quanto mais a incursão avançava, mais me atordoava e mais o senso de perigo gritava. Os temas retratados aqui são mesmo difíceis de se digerir e muitos são gatilhos, então é preciso estar psicologicamente estável para se aventurar em Oyasumi Punpun. É uma obra inacreditável de tão boa, o tipo de marca que te faz se orgulhar de ser humano como o autor.