spoiler visualizarGabriel.Larrubia 24/08/2022
Tive sentimentos bem ambíguos em relação a essa peça e - me avisaram que é a peça que os estudiosos de Shakespeare tem mais dificuldade de lidar, e toda adaptação sempre tem alguma subversão pra não ficar tão "problemático?" será essa a palavra certa?
Enfim, essa peça tem um prólogo onde sequestram um bêbado desmaiado e o iludem para achar que ele na verdade é e sempre foi rico, e assim que ele acredita apresentam pra ele a peça. No fim do prólogo fiz um grifo e uma anotação, e acho que ela pode encapsular bem a peça, pois de outra forma, pensando só que é uma peça com mensagem ruim, eu não saberia como encaixar esse começo.
Meu grifo foi "A melancolia é a mãe dos desvarios", não grifei mas em seguida para justificar porque Sly, o bêbado sendo enganado, devia assistir à peça, se diz: "quando a alegria e a animação nos envolvem o espírito, afastam muitos males e prolongam a vida".
Minha anotação: "Muito bom o apontamento pois acho ser verdadeiro, e/mas ao mesmo tempo causarão desvarios (creio eu, já que não li a peça ainda) através da alegria ou "pleno" conforto. Penso em pessoas "felizes" que vivem numa ilusão, delirium, ignorando conflitos, o que gera as "patologias da vida cotidiana (Freud), essas aceitas socialmente e ignoradas."
Terminando a peça fiquei muito confuso, Shakespeare é famoso por representar bem mulheres então fica parecendo um ponto fora da curva, e não teria problema se fosse, mas ainda fiquei com uma pulga atrás da orelha. No fim, Petrúquio aponta como foi o vencedor, como a mulher dele obedece a ele, mesmo sendo inicialmente a com maior fama de subversão e rudeza. Mas acompanhamos como ela foi tratada, sendo sempre mal tratada, não recebendo comida, não podendo dormir, tendo que viajar em horários arbitrários, tendo seu entendimento de realidade desafiado, sempre com a desculpa de que "é porque eu te amo", a comida não era suficientemente boa para ela então ela não devia comer, a cama não foi arrumada direito, etc. A melancolia é mesmo mãe dos desvarios, Petrúquio precisou submeter Cata às piores condições possíveis para que ela assumisse um papel de submissão, porém sempre com o pretexto de um suposto amor, sempre fingindo querer apenas o melhor para ela, então a promessa de conforto e o "entendimento mútuo" do casal ao final da peça que traz uma aparente calmaria depende da promessa do conforto, do “amor”, que necessita do fim do conflito.
Sly, mesmo devendo muito ao começo da peça, dormindo na rua, sendo expulso das cervejarias, não parecia insatisfeito com sua condição, conhecia muitas pessoas, etc. Cata ao final da peça, antes de entrar na casa de Lucêncio apresenta pela última vez uma discordância com Petruquio, discordância essa que se mantida causaria ela mais cansaço, fome, etc, por conta do posicionamento do marido. Com certeza a discordância com ele se mantém mesmo ao fim da peça, quando Cata faz um discurso em defesa de sua relação, mas apenas por ela saber que o conflito naquele momento causaria apenas mais mal tratos a ela. O desconforto se mantém, então que conforto é esse? Um que acumula cada vez mais conflitos dentro de si por não poder externaliza-los, um que com o tempo se expressará através de sintomas, mostrando que há algo errado.
Quando terminei li algumas resenhas em que se dizia que Cata “ao fingir obedecer, controlava por baixo dos panos a relação”. Isso me pareceu uma leitura mais confortável, em que Shakespeare continua como “aliado” ou coisa do tipo, mas não me convenceu, não vi sentido, não senti isso no decorrer da peça nem ao final, nem no começo ou sei lá. Que controle é esse que precisa acatar a todas loucuras do marido pra poder receber o básico do básico? Como que as outras mulheres que acabaram de se casar e estavam se divertindo conversando, que escolheram não ir aos maridos quando chamadas, e ainda terão sua comida e cama garantidas, estariam piores que ela? Petrúquio é representado e citado como um demônio a peça inteira, como que a fala final dele - que corrobora o discurso de Cata, discurso completamente cooptado através dos maus tratos da peça toda – deveria ser lida como uma verdade, a mensagem e sentido da peça?
Uma coisa que falo muito é como quando penso na palavra “sentido” penso no significado físico, direção, e logo penso em um rio fluindo. Como que o sentido da peça seria algo que vai contra tudo que ocorre a peça inteira, mesmo numa releitura? Um rio flui do começo ao fim em direção a algo, mesmo com afluentes, desvios, obstáculos, enfim. Algo que preciso lembrar também, o psicanalista Christian Dunker uma vez comentou sobre como interpretação não é explicação, não se espera uma teoria científica que esvazie tudo e explique tudo que é possível (e talvez esse entendimento de ciência seja errado também). Leitura é sempre algo expansivo, alguém pode dar mais importância para algumas pedras do rio, outra pessoa pode dar mais para um afluente, etc, e nenhuma interpretação esgota o que está sendo dito. Os significados são múltiplos, as interpretações são infinitas. Se pode argumentar que uma dá mais importância para as árvores e ignora a floresta, ou que uma dá mais importância para a floresta e não enxerga as particularidades das árvores, algumas dizem existir coisas que é impossível para outras pessoas enxergarem ou que não dão mais força à paisagem, e essas são as piores, o que algumas pessoas podem chamar de “erradas”, eu por enquanto não sei como lidar com isso, nem como explicar porque uma interpretação não é uma explicação, só sei que concordo com a frase.
Talvez esteja me repetindo, mas estão troçando de Sly do começo ao fim, quando forem embora ele estará muito pior do que estava, e pode se argumentar que mesmo no quarto luxuoso ele talvez já esteja pior que sua situação anterior. Por algum motivo ser uma peça dentro de uma peça esteve o tempo todo no fundo da minha cabeça durante toda leitura, mesmo isso só sendo lembrado uma vez, ao começo. Por algum motivo também, pensei que a peça principal era a sobre Sly. No fim, mesmo Sly me parecendo uma contra parte de Cata, ele é também uma contra parte do público, não? Não é para ele que a peça está sendo apresentada? Não é ele que comenta quão ansioso está em ver o fim, quer mais informações no meio da peça?
Lembremos a condição de Sly, ele está sendo iludido para ficar o mais confortável possível, um conforto que serve para divertir todos que participam dessa “pegadinha”, não porque seria o melhor para ele ou coisa do tipo. Sly está fingindo ser enganado? Ou ficou completamente sob controle do Lorde? Apenas por passar tantos anos de “inferno” que conseguiram mentir para ele de que toda aquela vida que ele viveu - quase sempre bêbado, apenas com a roupa no corpo, conhecendo muitas pessoa - era falsa. Não é passando pelo inferno que Cata é iludida? Me parece um ótimo exemplo de Gaslighting, o mais bem sucedido de todos. Acho que estou me repetindo muito, era pra outra direção que eu queria ir com esse parágrafo.
Se Sly representa o público, mas nós somos tanto público da peça de Sly quanto à peça de Cata, e sabemos que Sly está sendo enganado, que a peça inteira é para que ele “se alegre” e se mantenha na ilusão por mais tempo possível, esquecendo todo sofrimento que passou e toda troça que lhe estão impondo, por que nós não estaríamos também sendo enganados para nosso maior conforto? Tranquilizados de que realmente, o público da época estaria certo ao tratar a esposa de tal e qual maneira. Se pensarmos apenas na peça de Cata é muito fácil se iludir, pensar que Shakespeare apoia aquilo. Porém, a peça de Sly se mantém como uma pulga atrás da orelha. Sei que crítica literária, estética, estão longe de serem ciências, mas o que mais empolga (ou devia empolgar) um cientista é quando sua tese é tensionada, pois assim, enfrentando as críticas possíveis, se pode ajustar a tese para que se aproxime mais da realidade, ou até mostrar que é preciso uma nova tese. A peça de Sly é essa tensão, e por enquanto minha tese é essa, até eu encontrar outra tensão.