Giacomelli 11/01/2024
Como um bom livro pode envelhecer mal!
O livro de Marcelo Rubens Paiva certamente impressionou os leitores, especialmente os mais jovens, naqueles idos anos de 1980. A linguagem leve provavelmente alcançava o ouvido dos jovens de uma maneira macia, e os fazia se sentir pertencentes àquela narrativa. Imagino, também, que a temática gerava bastante curiosidade ? um jovem, universitário, popular, que, num repente, no período auge de sua vitalidade juvenil, por causa de um acidente estúpido, perde os movimentos do pescoço pra baixo. Isso, em final da década de 70. Em meio a tantas revoluções culturais, sexuais, de comportamento. E também em meio a anos de tanta repressão ditatorial em nosso país. Esse breve argumento deve ter criado no público à época da primeira edição de Feliz Ano Velho uma curiosidade quase sádica, e voyeurista. Outro tema que deve ter inspirado a curiosidade é a história pregressa do autor e sua relação com seu pai, deputado morto pela ditadura militar. À época de sua publicação acontecimento ainda sem explicações, sem um veredicto. Um sumiço misterioso. Será que Marcelo vai expor nesse livro algum segredo que ainda não conhecemos sobre o assassinato do pai? Todas essas questões, ao lado de muitas mais, fizeram deste livro um best seller. Um livro com um Jabuti em seu currículo. Mas, apesar desse motivador enredo, o autor nos apresenta, em seu personagem principal ? ele mesmo ? características bem pouco dignas de louvor ? pelo menos hoje em dia. O personagem obviamente cativou e inspirou a identificação em muitos jovens de sua época, mas com o olhar distanciado dos dias atuais, com uma lupa de aumento apontada para alguns pontos da trama, podemos encontrar expressões e passagens que precisam ser discutidas, criticadas e repensadas. Expressões e passagens essas que entre os jovens dos idos anos 70 poderiam passar como naturais, hoje nos parecem amplamente questionáveis. O personagem, durante sua narrativa, por vezes, dispõe de termos homofóbicos, racistas, misóginos, machistas, etaristas, e por aí, vai. O que causa uma sensação de estranhamento nada positiva no leitor da atualidade. O incômodo nos pega desprevenidos e de surpresa ao virar da página. Em termos chulos, desnecessários, ou mesmo na forma de piadinhas sem graça, que não ajudam em nada na narrativa da história. Outro ponto negativo é a hipersexualização das mulheres em alguns momentos. E justamente vinda de um personagem que se defende em vários momentos como não machista, ou, talvez, menos machista que a maioria dos outros caras. Próximo às últimas páginas do livro, o autor nos entrega a descrição de uma cena de sexo que poderia estar em qualquer um desses antigos livros pornográficos de banca de jornal. Pornografia pela pornografia? A princípio me pareceu, mas ao final do livro, parece que ele quer fechar a ideia dizendo que pessoas com deficiência também transam e sentem prazer. Essa mensagem é legítima e importante, mas poderia ter sido passada com um pouco mais de delicadeza em sua escrita, sem tornar-se pornográfica, mas erótica, nos termos e ações. Por essas e outras, eu digo que o livro envelheceu mal para os nossos tempos, para os nossos novos olhares e as nossas novas formas de encarar o mundo. Aquilo que era naturalizado na década de 70 e 80, hoje nos causa estranhamento e é objeto de crítica. No mais poderia afirmar que um dos pontos positivos do livro talvez seja justamente ele se tratar de um documento desta época, um documento de como os jovens se comportavam, como os jovens se comunicavam, com o que se identificavam. Como algumas expressões que hoje nos são claramente preconceituosas, eram tratadas com naturalidade naquele tempo. E também outro ponto positivo da história é demonstrar e mostrar, assim como um documento, várias facetas da época, como os festivais de música, as mudanças políticas do país, os discos que estavam sendo lançados, a cara dos artistas da época e o comportamento dos jovens em geral.
Em resumo, o livro aborda temas sensíveis e controversos da década de 70 e 80, como a questão da deficiência, as revoluções culturais e comportamentais, além da relação do autor com seu pai, vítima da ditadura militar. E minha principal crítica em relação ao livro é em relação à forma como certos temas são abordados na narrativa, especialmente no que diz respeito a termos e representações consideradas problemáticas nos dias de hoje. É fato a importância de se analisar obras literárias à luz do contexto atual e questionar como certas abordagens podem ser impactantes para os leitores contemporâneos, mas o livro ainda guarda sua relevância sendo encontrado em diversas listas de ?livros para compreender a década de 70?, ou ?livros para saber mais sobre o período da ditadura no Brasil?. Aliás, foi assim, através de listas como essas, que me interessei por sua leitura. A reflexão sobre a evolução das perspectivas e valores ao longo do tempo é essencial para compreendermos o impacto das obras em diferentes épocas. Parece que o livro ainda desperta debates significativos sobre sua relevância e representatividade nos dias atuais. É interessante observar como a literatura pode servir como um documento histórico, refletindo as transformações sociais e culturais ao longo das décadas.