Dhiego Morais 12/07/2020AscensãoLançado originalmente em 2018, no exterior, Ascensão é o último livro a receber os leitores brasileiros neste ano, com todo o capricho editorial da Suma: capa dura, papel Pólen Bold de alta gramatura e ilustrações de Mark Edward Geyer. Com todo o tratamento de uma edição de luxo, Ascensão, assim como A Pequena Caixa de Gwendy, configura-se como mais uma tentativa de nos levar às saudosas ruas sinistras de Castle Rock.
“O ontem já foi, o amanhã talvez não venha.”
Scott Carey é o nosso protagonista. Jovem, alto e recentemente separado, Scott procura focar sua atenção em um importante trabalho, um serviço que o projetará para um elevado patamar, não somente financeiro – ainda que o pagamento seja muito, muito bom. Vivendo sozinho em uma das partes mais nobres de Castle Rock – Castle View –, ele parece se manter distante de todos os problemas mesquinhos de sua comunidade. Exceto por um.
Stephen King, diferentemente de maioria de suas grandes histórias, prefere jogar o leitor diretamente no auge dos acontecimentos estranhos. As páginas voam velozes, não há muito tempo para trabalhar com esmero o background das personagens. Logo nas primeiras páginas descobrimos as estranhezas que cercam a vida de Scott Carey: ele está perdendo peso diariamente e em velocidade vertiginosa.
É possível que alguns leitores de pronto pensem que Ascensão é uma continuação, ou pior, uma versão remasterizada de A Maldição, livro publicado pela primeira vez como A Maldição do Cigano, de Richard Bachman (The Thinner, 1984) e que contou com uma adaptação cinematográfica digirida por Tom Holland – não o nosso Spiderman – em 1996. A verdade é que, apesar da semelhança inicial do plot, a história e o mote dela é totalmente diferente, inclusive o tom da escrita e o sabor que fica após a leitura.
Enquanto nosso protagonista de A Maldição, o advogado Bill Halleck emagrece diariamente graças a uma maldição (é isso que você ganha ao atropelar uma cigana, cara...), Scott descobre estar perdendo peso sem compreender o motivo de tudo isso, muito menos a origem desse misterioso evento. Se por um lado Bill não é lá flor que se cheire, Scott consegue capturar muito melhor a empatia do público leitor, que rapidamente simpatiza com ele. Além disso, há mais uma pequena diferença: não importa quais roupas Scott vista, nem quantas milhares de calorias ele como, ou ainda que pesos ele segure ou enfie nos bolsos, pois independentemente disso, ele continua pesando o mesmo. É como se ele não fosse afetado por forças externas ou naturais, como a gravidade.
Sem se preocupar com o que o futuro lhe reserva, Scott decide usar o pouco tempo que lhe resta para resolver algumas coisas. Enquanto termina o trabalho importante para uma firma, percebe a redoma de intolerância e preconceito enraizado em Castle Rock, uma cidadezinha com tendências republicanas que despontam no conservadorismo ultrapassado e no poder ludibriador de ícones inconstantes como Trump – por falar nele, Stephen King aproveita Ascensão para reforçar suas duras críticas à figura política e desrespeitosa de Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos.
Ciente de que o Dia Zero, o dia em que deverá perder os últimos gramas de seu peso está próximo, Carey tenta consertar a relação problemática que tem com suas vizinhas, Deirdre e Missy. Vistas pela comunidade de Castle Rock como apenas “o casal lésbico e dono de um restaurante”, elas enfrentam duramente o desprezo da vizinhança, uma contínua separação que afeta a estabilidade dos negócios e a saúde do relacionamento, mantendo Deirdre sempre na defensiva.
Dr. Ellis, um médico aposentado é o único que sabe do segredo de Scott. Despreocupado com o próprio futuro, ele não dá atenção às recomendações do amigo. De certo modo, vê-se como um paciente terminal.
A atmosfera conservadora local se quebra em meio às tentativas fiéis de Scott. Ao longo das páginas temos conhecimento de rotina e da forma como ele encara a vida, como se relaciona com os demais moradores. Os meses passam sem que percebamos, logo estamos diante de eventos marcantes, como a Ação de Graças, o Natal e a maratona anual de Castle Rock. As transformações acontecem organicamente, e o livro, embora curto, se converte e muitos mais significados.
“Tudo leva a isso, pensou ele. A essa ascensão. Se é assim que é morrer, todo mundo deveria ficar feliz de partir.”
O que acontecerá quando Scott perder todo o peso? Como fazer para que essa coisa estranha pare ou se reverta?
Ascensão é um ensaio agridoce sobre as pequenas transformações que podemos promover em nós mesmos e em nossa comunidade. É um pouco sobre compreender aquilo que nos prende ao nosso plano e a nossa razão de existir. O que nos mantém conectado a nossa vida atual? Quais são esses laços, esses fios que se ligam ao nosso coração, que nos enraízam e nos aproximam dos outros, de nossa vizinhança? Nesta história, King não nos faz encarar as origens, mas nos convida a refletir e investigar: preocupamo-nos com tantas coisas em uma imensidão de significados, mas será que estamos atentos para aqueles que estão a poucas casas de distância?
Para ascender, é preciso antes estar disposto a encarar a imensidão do seu próprio vazio.
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