Pamela.Nogarotto 19/07/2023
Amor morto, mas amor
Imagine uma das personagens à beira da loucura de Clarice Lispector. Laura, de A imitação da rosa; G.H. serve; mas melhor se for Ana, de Amor, porque é mãe. Agora imagine uma personagem não à beira, mas para além da iminência da loucura: já devorada por ela. Eis um pouco do que Ariana Harwicz faz em “Morra, amor” (2019), publicado no Brasil pela Editora Instante, traduzido por Francesca Angiolillo.
Em um resumo grosseiro, o livro narra a vida de uma mulher que acaba de se tornar mãe em um lugar no interior da França. Ali, dentro do núcleo familiar, as coisas começam a perder o contorno para essa mãe que sofre em uma relação materna que poderia se definir como uma maternidade-não-sei-como (quando tudo e todos sempre indicaram que uma maternidade sempre é uma maternidade-sei-de-alguma-forma-como).
A escritora argentina ocupa um lugar com “Morra, amor” que tem se destacado na literatura latino-americana escrita por mulheres (mas não só, já que Elena Ferrante e Annie Ernaux se alinham a essa tendência na Europa): a crueza da maternidade, a suspensão de eufemismos para tratar da miséria que pode acompanhar a criação de uma criança. Isso, por si só, já é o suficiente para nos inclinar à leitura. Para além do enredo, as estratégias estéticas da escritora acompanham esse descompasso materno do desejo, da felicidade, da morte, da perda do próprio corpo (a maternidade é sempre, em alguma medida, a perda do próprio corpo).
Interessa notar que a mãe da protagonista não é citada durante todo o desenvolvimento do livro: a mulher que se torna mãe — e essa forma de referenciá-la se deve ao fato dela não ter um nome próprio — menciona apenas a figura da sogra como a representação do feminino dócil. O curioso dessa ausência da própria mãe reside, ao meu ver, justamente porque ao se tornar mãe, as mulheres se confrontam com a figura materna que lhes inseriu na linguagem. Essa ausência da própria figura materna parece fazer eco na ausência que, ela mesma, forjará na vida do filho. Essa ausência é marcada, talvez no ponto alto do livro, no momento em que a protagonista deixa de se referir ao menino como “nosso filho” (dela e do marido) e passa a chamá-lo de “seu filho”. Esse uso dos pronomes dizem muito.
“Morra, amor” relembra o que a todos os leitores já foi demonstrado: a narração em primeira pessoa é sempre um campo minado de fatos e fantasias. Aqui, essa máxima se intensifica justamente porque a protagonista adentra em uma desfiguração extrema de si mesma e da realidade. Se o livro começa com uma mínima clareza de acontecimentos, isso se dissolve completamente no decorrer da leitura, e é só no fim que se pode dar um sentido ao que veio antes. Aí se pode destacar um outro paralelo com a obra de Clarice: o pensamento fluído, escrito conforme vem. No caso da argentina, no entanto, esse pensamento fluído é naturalmente embaraçado.
Um livro de perturbação compartilhada entre narradora e leitora. Esteticamente, acompanha o caos da mente da protagonista em sofrimento pela maternidade e, tamanha a confusão entre pensamento e fatos, diálogos que transitam entre diretos e indiretos, constantemente sem marcação, pode ser difícil continuar. Em uma segunda leitura, partindo de mais familiaridade com a escrita de Ariana Harwicz, provavelmente outras nuances se deixariam ver: daí vale citar o que ganhou o nome de “trilogia da paixão”, os outros dois romances publicados pela autora que compõe a tríade: “A débil mental” e “Precoce”.
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