Henrique Fendrich 10/01/2022
Excelente reconstrução do famoso episódio das "Bruxas de Salém", dessa vez sob a perspectiva de Tituba, uma negra supostamente de Barbados e também acusada de bruxaria. Tão poucos registros deixaram os brancos sobre Tituba que coube a Maryse Condé imaginar uma história para ela, tarefa que desempenhou de maneira muito eficaz e bonita.
Naturalmente, sobressai-se toda a crueldade do tratamento dispensado aos negros nas Américas, bem como toda a contradição de uma moral cristã que admitia essa tratamento e chegava mesmo a considerá-lo uma virtude. A ironia está já na primeira frase do livro, quando se fala de um estupro em um navio negreiro que atendia pelo nome de "Christ the King".
Essas contradições se tornam ainda mais evidentes quando Tituba entra em contato com a sociedade puritana de Salém, que lhe incute ideias como a de Satanás. Como em muitas igrejas de hoje em dia, Satanás tinha naquela sociedade um protagonismo maior do que o do próprio Deus, pois tudo, absolutamente tudo na sua vida podia ser uma artimanha do tinhoso.
O pastor Parris encarna melhor esse tipo de fanatismo na obra, mas todo aquele ambiente, emulado a partir de uma história real, era claramente marcado por superstições religiosas que estavam bem longe de ser inofensivas. Uma hora, iria acontecer um episódio como o das bruxas de Salém, pois aquelas pessoas precisavam urgentemente de bodes expiatórios para conseguir atenuar a própria ansiedade diante da obrigação de escapar do coisa-ruim.
Um trecho que anotei e que diz respeito à dificuldade de Tituba para entender o conceito de "culpa" e de "condenação", que era basicamente o que orientava os ritos daquelas pessoas:
"- Será que é porque fizeram tanto mal a todos os seus semelhantes, àqueles que têm a pele negra, àqueles que têm a pele vermelha, que eles têm esse sentimento tão forte de estarem condenados?".
De fato, ninguém pode dizer que aquelas pessoas brancas não tinham motivos para temer uma condenação eterna, dado o tratamento que dispensavam aos negros e aos índios, além de outros brancos (a história de Tituba com um judeu deixou isso bem claro também). Quanto ao "cultuado" Satanás, que tinha mesmo um status de Deus, Tituba chega a refletir:
"Onde estava Satanás? Não se escondia ele nas dobras das capas dos juízes? Não falava pela voz de juristas e de homens da igreja?".
Essa reflexão é feita justamente em meio aos julgamentos do episódio das Bruxas de Salém. Achei que a construção da personagem até chegar aos episódios de Salém foi muito boa e, em dado momento, lê-se o livro de forma vertiginosa, o que indica o sucesso tanto da trama como da linguagem. Depois de Salém, nada se sabe com segurança sobre Tituba e a autora então escolheu uma trajetória para ela, que foi interessante, sim, mas não tanto quanto antes.
Uma coisa que pegou para mim e que contribuiu para eu não dar 5 estrelas para o livro é um certo anacronismo da história, sobretudo quando Tituba encontra na prisão uma mulher que evoca abertamente o feminismo, com esse nome mesmo, coisa que me parece impossível imaginar que acontecesse na década de 1690, quando se passa a história. Ela poderia ter ideias que se associam ao moderno feminismo, mas, da forma que foi falado, parece que alude a um movimento organizado, o que certamente não podia existir já naquela época.
Pareceu-me também que Tituba se preocupa em como será lembrada no futuro, como se tivesse noção de que o episódio das Bruxas de Salém seria representativo o bastante para ser lembrado séculos depois, o que também não me pareceu totalmente crível. Quanto aos mortos que andam para lá e para cá, sempre acompanhando as andanças e as decisões de Tituba, nada tenho a opor, gostei bastante até do modo como foram incluídos, e sabe-lá se, no fim das contas, as coisas não são mesmo parecidas com o que a autora narrou ali.
Note-se também que, por mais que os brancos e puritanos condenassem Tituba e tudo que pudesse sugerir alguma "bruxaria" da parte dela, seguidamente recorriam a ela para resolver seus problemas mais imediatos e, além disso, tinham eles próprios uma série de sortilégios que só não entravam no rol de bruxarias porque vinham deles mesmo, e não dos negros. E Tituba não entende: como algo que faz bem e ajuda as pessoas pode ser bruxaria?
Também nesse ponto não é difícil fazer um paralelo com o modo de as igrejas neopentecostais tratarem os cultos de matriz africana, ao mesmo tempo em que incrementam os seus próprios cultos de uma série de rituais e superstições sem base no seu livro sagrado.
Em suma, vale muito ler e refletir sobre o que está sendo lido.