raphael netto 14/02/2022Atemporal e atualO que seria de nós sem habilidades como a fala e a escrita? Basicamente é isso que Octavia trabalha nesse conto. E se eu não sou esse que foi escrito por volta de 1980, eu diria que ele é bem atual.
Um vírus assolou o mundo e comprometeu a capacidade de comunicação das pessoas, além de provocar mortes. Em graus diferentes, todos ficaram com sequelas em suas atividades cognitivas. Uns não conseguem mais falar, outros não conseguem mais ler e nem escrever. Há uma grande dificuldade de comunicação, pelo menos oral, neste mundo distópico.
Em poucas páginas a gente fica muito imerso num tema complexo e com tanta profundidade e conseguimos ver como a falta de comunicação afeta as interações humanas. Há um risco constante aqui, todos ficam desconfiados e inseguros perto uns dos outros. As pessoas que mais foram afetadas por esse vírus, ou as mais debilitadas, são as que mais ficam agressivas. Isso porque sem a linguagem (aqui sendo a fala, a escrita, a leitura), outros sentidos são aflorados, como o ódio, a inveja, solidão, perda... As pessoas perdem sua identidade, sua civilidade e o sentido da vida. Até mesmo Rye, a protagonista, lida com sentimentos dessa natureza ao perceber que seu novo companheiro de viagem tem sentidos que ela perdeu. Sem a comunicação, as pessoas se comportam como verdadeiros animais, uma vez que há muitas passagens que fazem essa comparação explicitamente, ?percorriam as ruas correndo umas atrás das outras e guinchando como chimpanzés?. A civilização regride bastante. As pessoas que ainda possuem capacidades de ler, falar ou escrever precisam esconder isso das outras pessoas, porque se não a inveja e o ódio tomariam conta e seriam perseguidos e até mortos por isso.
É uma história que é atemporal e bem atual, não só por trabalhar essa questão de falta de comunicação e diálogos, mas por trazer questões que nos fazem refletir sobre os dias de hoje. Ano passado tivemos um caso de uma mulher violentada dentro de um trem enquanto outros passageiros assistiam, e, nas palavras de Butler em ?Sons da fala?: ?as pessoas poderiam muito bem observá-los inertes caso ele tentasse estuprá-la?.
E o mais magnífico é a descrição de tudo. Dos personagens, dos seus sentimentos, dos acontecimentos e ambiente. A autora brinca bastante com nosso visual, com a comunicação visual, que acaba fazendo o leitor se inserir nesse cenário angustiante e aterrorizante, porque não há comunicação oral na narrativa, o que nos faz experienciar um pouco desse mundo pós apocalíptico sem a linguagem oral.
Sem diálogo e sem comunicação, o mundo muda completamente e percebemos como agiríamos em um cenário assim. E, embora os personagens tentem se comunicar de outras formas (gestos, olhares, etc), ainda podemos ver o caos que a perda de habilidades instauraria. Mas, no final, percebemos a verdadeira importância dos Sons da fala.