Gustavo Ferreira 29/04/2021
“Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.”
Como esperar que crianças ajam como crianças quando lhes é exigido que ajam como homens? Como esperar que meninos brinquem como meninos quando já conhecem os prazeres da vida adulta? Como esperar que garotos suportem as dores de tal vida quando são apenas garotos?
O ódio é um dos principais ingredientes dos Capitães da Areia, a manifestação e consequência desse sentimento pode ser vista de diversas formas ao longo da história, seja no ódio do Professor com o “homem de sobretudo preto”, de Volta Seca com a polícia, ou de Sem Pernas com o mundo. Sem Pernas que é, de longe, a personagem mais complexa e interessante da história, é quem retrata da forma mais cruel o resultado do abandono, da miséria, da exclusão social e dos traumas na vida de uma criança.
Esse ódio, que muitas vezes se confunde com o medo e se manifesta através da hostilidade, só parece ser amenizado quando os Capitães encontram outro sentimento de mesma grandiosidade, o amor. Amor que os próprios capitães sentem uns pelos outros de forma fraternal. Amor que Dora os proporciona como nunca experimentaram antes.
Os garotos do bando não eram bons e nem inocentes, pelo contrário, a malícia do mundo já havia os corrompido e, por muitas vezes, deixavam aflorar aquela maldade característica dos homens. Porém, por que meio e por qual motivo haveriam de se manifestar a maldade e o ódio, se no lugar de fome houvesse fartura, se no lugar de miséria houvesse luxo, ou, mesmo na pobreza, responda-me, que amargura de maldade ousaria não seria adoçada pela bondade de um seio materno?
“Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom.”
Esse livro é uma daquelas obras que proporcionam a imersão que só os livros proporcionam. Leia e sinta-se valente como Pedro Bala, companheiro como João Grande, astuto como Professor, elegante como Gato, malandro como Boa Vida, sinta a fé de Pirulito, o ódio de Volta Seca com a polícia, ou mesmo, o ódio de Sem Pernas com o mundo.
A obra de Jorge Amado é um livro de aventuras pelo qual, por vezes, me peguei vidrado, por vezes ri alto, mas ainda assim, é uma história triste, como uma história real. É impossível enxergar o livro como sendo apenas um romance, se trata, na verdade, de um livro de extremo impacto social, não por menos foi perseguido pelo Estado Novo desde seu lançamento. Não é uma obra simplesmente sobre crianças, é uma obra sobre uma sociedade desestabilizada.
Morando em São Paulo, faz parte da rotina ver garotos nas ruas do centro e nas quebradas, pedindo, roubando ou simplesmente sobrevivendo. Se assim posso chamá-los, os “Capitães do Asfalto”. Escrevendo essa Resenha me recordei desse trecho de uma música dos Racionais MCs:
"Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de 1 real, minha chance era pouca. Mas se eu fosse aquele moleque de touca que te atira e enfia o cano dentro da sua boca…”
Mas, talvez, os Capitães da Areia, que estavam muito mais acostumados a escutar o samba das ruas da Bahia, se identificariam mais ainda com esse trecho, de Jorge Aragão:
“Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, nasci brasileiro”.