Isabel 01/12/2012Como solucionar uma série de crimes em um país cujo governo nega a existência dos mesmos?
É essa a pergunta que Liev Demidov se faz. O leal agente da MGB – polícia secreta soviética –de Stalin torturou, adulterou e matou em prol do regime, do tal do “bem maior”, de uma desejada paz e justiça social.
Contudo, Liev é acusado de traição sem razões aparentes, e é isolado com sua esposa Raíssa em uma cidade do interior, onde ele é “rebaixado” da elite do funcionalismo público soviético para um mero soldado de uma milícia –como não se admitiam a existência de crimes “comuns” na URSS de Stálin, a milícia teoricamente funcionava como uma espécie de “segurança” para coisas simples como brigas de bar, rixas de família e outras coisas do tipo (mas obviamente acabava fazendo muito mais).
Quando, depois de uma caminhada, ele encontra o corpo de um garotinho, Liev entra em choque: meses antes ele havia convencido a um de seus subordinados que a morte de seu filho – dada nas mesmas condições e com as mesmas características do garotinho que Liev encontrou – não era um assassinato, e sim um mero acidente de trem – afinal, afirmar ao contrário seria traição, uma transgressão que seria vista como uma dúvida da competência do estado e ameaça à paz social.
Como forma de se redimir moralmente e, acima de tudo, de encontrar uma razão para viver, Liev começa a investigar os assassinatos, descobrindo que eles não ocorreram somente naquelas duas situações – cerca de quarenta e quatro pessoas, em sua maioria crianças, foram mortas nas proximidades de estações de trem por toda a União Soviética, tendo em comum um punhado de sujeira na boca e um barbante no tornozelo.
E é essa versão tosca das idéias de Marx, Engels e outros grandes que Tom Rob Smith nos apresenta: a União Soviética. Embora o livro apresente a consciência de que vários problemas sociais foram resolvidos, não deixei de lembrar de 1984, de George Orwell: a descrição do medo do povo em geral de acabar em um gulag (campos de trabalho forçado, usados muito no stalinismo) por um crime qualquer (que nem sempre de fato foi cometido) não se diferencia das apreensões de Winston Smith. Viver cercado, sem poder questionar ou nem sequer reclamar: era isso que, aos olhos do autor, era reservado aos soviéticos.
A “cegueira” do governo soviético quanto aos crimes chamados “comuns” e “oriundos de uma sociedade capitalista” é também bem trabalhada: segundo o regime, assassinatos e roubos eram efeitos colaterais de uma sociedade capitalista desigual (sim, estou sendo redundante). Concordo em parte com essa lógica: creio sim que a maioria dos crimes seja cometido por pessoas desesperadas, que transmutam uma personalidade com princípios morais para uma sem escrúpulos diante do desespero. Contudo, ignorar completamente o tal do banditismo por pura maldade é extremamente perigoso.
Mas é claro que tais crimes não poderiam passar em branco, sem uma justificativa: seria muito suspeito, e fugindo a qualquer tentativa de controle social. Para isto, eram usados bodes expiatórios: doentes mentais, homossexuais e supostos “inimigos do estado”, anunciados como espiões contratados pelo ocidente que objetivavam acabar com a estabilidade da sociedade soviética. Descobrir esse tratamento dado aos homossexuais, aliás, foi bastante chocante para mim – não consigo associar nenhum posicionamento verdadeiramente de esquerda ao preconceito, mesmo sabendo que, nos anos 50, o termo “homofobia” ou qualquer noção de o quão errado isto era existia.
Criança 44, como um bom thriller, não te deixa respirar – tão logo que um mistério ou um problema é resolvido, outro, ainda mais complicado, vem a tona, e tudo se amarra numa perfeita e coerente teia de acontecimentos. Não sei se é minha falta de familiaridade com o gênero, mas não vi nenhum grande defeito em Criança 44 – além do supracitado, o livro é bem-escrito e parece ter demandado uma grande pesquisa por parte do autor.
Mesmo não acreditando no sobrenatural e sabendo que a possibilidade de que um serial killer me ache é mínima; não gosto muito dessas coisas. Sei que não é real, mas quando estou sozinha no escuro, toda a racionalidade é deixada de lado, o impossível se torna real. De forma positiva, Criança 44 foi leve o suficiente para não tirar meu sono – então, provavelmente me aventurarei mais no nem-tão-fantasioso reino dos serial killers no futuro.
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