Carol 28/04/2021Impressões da CarolLivro: Ponto Cardeal {2017}
Autora: Léonor de Récondo {França, 1976-}
Tradução: Amilcar Bettega
Editora: Dublinense
176p.
"Ponto Cardeal" é a história de Laurent que, por volta dos seus 40 anos, com a família constituída e uma vida financeiramente estável, reflete sobre quem ele é, de fato, sobre sua identidade sexual e decide transicionar. É a história dessa transição e de suas consequências.
A leitura é bem fluida, os capítulos são curtinhos e a abordagem do tema é leve, na medida do possível, em se tratando do tema da transexualidade.
No entanto, tenho algumas ressalvas.
A fluidez, em alguns momentos, confunde-se com a falta de aprofundamento na narrativa. Entendo que Laurent é de uma classe social privilegiada, num país da Europa, ainda assim, sua transição é contada quase como um conto de fadas e os percalços que aparecem, não são bem desenvolvidos.
Principalmente os que concerne à relação de Laurent com Solange, sua esposa, e os filhos. Os conflitos são citados, mas as soluções são corridas, quando não simplistas. Gostaria de ler mais sobre Solange, mas aí não seria um livro sobre Laurent.
Discordo das críticas que apontam que Léonor de Récondo, por ser uma mulher cis, não poderia escrever uma protagonista trans. Sinceramente, isso é interdição e um entendimento deturpado do conceito do lugar de fala. Não há espaço pra esse tipo de veto nas artes. Literatura não é só espelho, é sobretudo uma janela para fora de nós.
Que mais autores e autoras cis criem narrativas diversas, atentando-se, porém, em pesquisar e conversar com as pessoas que desejam retratar, para não incorrerem em erros evitáveis como, por exemplo, personagens estereotipados e planificados.
Enfim, por esse exercício de alteridade - de identificação e, por vezes, de estranhamento ao lermos sobre experiências de vida diversas da nossa - creio que "Ponto Cardeal" é uma leitura muito bem-vinda, que amplia e enriquece nossa visão de mundo.
Uma escolha supimpa para clubes de leituras compartilhadas, desses livros que crescem depois do debate.
"Mathilda tem fome, desce até a cozinha, apanha uma pizza na geladeira e a põe para aquecer no micro-ondas. A massa fica quente e mole. Não importa. Ela come de pé, empoleirada em seus saltos altos, se perguntando se o seu olhar é diferente do Laurent. Não, não é. Eles são uma. Uma só e mesma pessoa, um mesmo passado, apenas um corpo que não é o bom corpo." p. 41