AleixoItalo 25/12/2021Depois de anos querendo ler, finalmente cheguei ao fim dessa obra magnífica: 'As Brumas de Avalon' (vale ressaltar que todos os 4 livros devem ser considerados apenas um), provavelmente a mais popular adaptação das lendas Arturianas. A obra narra toda a trajetória de Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, desde seu nascimento até sua morte mas com uma abordagem singular: esqueça a ação e o ritmo alucinante, não espere por grandes batalhas, aqui não tem “lutinhas”, afinal não se trata de uma mera história de aventura, mas sim épico sobre desejo, luxúria, ambição e sonhos despedaçados, uma obra memorável sobre o choque da cultura celta e o cristianismo e acima de tudo um ode ao universo feminino!
É uma obra prima sobre perda e a inexorabilidade do destino, a medida que Avalon se perde nas brumas, vemos o desaparecimento da cultura celta sucumbindo ao avanço dos intolerantes cristãos e o que resta é uma tentativa dos últimos adeptos para manter vivos os ritos e a memória dos deuses antigos. A crença é a força mais poderosa da trama, esteja ela presente na convicção da existência de artefatos mágicos, na magia e nos cultos da carne dos pagãos ou na fé e temor do incompreensível pelos cristãos, a religião e o sexo são usados como ferramentas para manipular reinos e urdir as teias do destino. Não importa se cristãos, pagãos, ou ateus, todos utilizam suas crenças e convicções para moldar o mundo na imagem que melhor lhes apetece.
Acima de tudo 'As Brumas de Avalon' é um livro das mulheres, enquanto os homens ficam a deriva no mundo vivendo suas aventuras, são as mulheres que narram e contam toda a história. Igraine, Viviane, Guinevere, Morgause e tantas outras, são as verdadeiras protagonistas da obra, e acima de todas a personagem principal, maior vítima, heroína e vilã da obra: Morgana . Uma das obras literárias mais poderosas sobre o mundo feminino, elas que mesmo submissas à vontade dos homens, são quem observam, comandam e tramam todos os acontecimentos, direta ou indiretamente. A abordagem ao Feminino não é um simples discurso panfletário e as relações humanas entre os personagens é sublime. Mesmo com papéis a cumprir, obrigações triviais como cuidar da casa ou gerar filhos e mais filhos, ainda assim as mulheres com seus desejos e todo poder que seus corpos lhes confere, são de longe as personagens mais poderosas da trama.
E ainda assim sobre espaço para uma bela narrativa, contemplação do mundo e para os próprios Cavaleiros. Com a ausência da ação a obra se torna bastante minimalista e completamente introspectiva, os famosos cavaleiros estão lá realizando suas proezas e erigindo suas famas, mas é a paisagem úmida e vasta da Bretanha, com suas charnecas, morros e florestas que chama a atenção, e tal grandiosidade abre espaço para reflexões filosóficas a cerca da natureza dos inimigos ou da própria existência. A magia está no ar, mas o mundo fantástico da Bretanha vai aos poucos dando lugar para um mundo mais realista, onde encantos e milagres muitas vezes podem ser explicados como mera convicção ou fé. Ainda assim, divindades estão presentes por trás das brumas da realidade e contemplar esses seres muitas vezes leva à loucura ou epifania.
‘As Brumas de Avalon’ é uma obra melancólica, trata da passagem do tempo e da inevitabilidade do destino, à medida que personagens vem e vão e seus sonhos vão sendo esmigalhados, fica evidente o peso que isso traz para a psique dos personagens, todos (de verdade) muito notáveis, mas vale todo o destaque para Morgana, a principal narradora da obra que acompanha todos os acontecimentos do princípio ao fim e que sempre se depara com verdades muito maiores do que aquelas que ela acreditava.
Uma coisa que adoro quando leio um livro, é encontrar nele memórias de outras obras (seja por influência direta ou por mera lembrança pessoal). Um livro que foi diretamente influenciado (acredito eu) pelas Brumas foi ‘O Gigante Enterrado’, do Kazuo Ishiguro, livro muito melancólico que também se passa num mundo tomado pelas brumas e pelo esquecimento, cenário muito semelhante ao entregue por Marion Zimmer Bradley. É interessante notar também a visão do "sagrado" é muito semelhante àquela utilizada por Lovecraft ou Arthur Machen, onde a manifestação de entidades grandiosas demais, pode destruir a mente daqueles que as vislumbraram.
Não é sem méritos que As Brumas é um dos livros mais influentes da literatura, é a clássica lenda de Arthur, mas focada em seus aspectos filosóficos, repleta de monólogos, reflexões e diálogos, aqui saem de cena os heróis e entram no palco as pessoas, humanas, com vontades e desejos, numa história repleta de luxúria, amor e melancolia!