Val 17/04/2021
Sobre a Terra Somos Belos por um Instante
Pense em como você escreveria uma carta para a sua mãe, viva ou perecida, relembrando a vida em comum, o cotidiano compartilhado, os convivas, os momentos ruins e os bons. Como seria? Ah, e não esqueça que sua mãe não sabe ler.
Aqui, neste caso, teria que dosar sua escrita com boas porções poéticas. Pois estou falando do inebriante romance epistolar do poeta vietnamita-americano Ocean Vuong, em sua obra de estreia como romancista Sobre a Terra Somos Belos por um Instante. Este é o mais recente lançamento da Editora Rocco, celebrado vigorosamente pela crítica internacional, principalmente a norte-americana. E você só vai entender esse título após concluir a leitura da obra.
Uma leitura prazerosa que faz-nos lembrar, em certas passagens, situações similares ou próximas de algumas que também vivenciamos com nossa família. Mas, certamente, não as escreveríamos em qualquer carta. Mas Vuong, num trabalho autobiográfico, consegue valoriza-las entremeando passado e presente, num misto de narrativa literária com carta-narrativa. Traz à luz vidas diferenciadas, de mundos díspares, e coloca em cheque como podemos curar e resgatar uns aos outros sem abandonar quem somos.
Seu texto é explendoroso. Sem contextações: “Acordo com o som de um animal aflito. O quarto tão escuro que nem sei dizer se meus olhos estão abertos. Uma brisa passa pela janela rachada, e com ela entra a noite de agosto. ...Eu me equilibro no ar negro e vou rumo ao corredor.”
Sua crítica social é suave, ao tempo que ferina e realista, principalmente no contexto da Guerra do Vietnã, seus sobreviventes e interação com os jovens soldados americanos, quase meninos, e a vida de imigrantes na América. Trata do preconceito racial e religioso ao relembrar para a mãe suas passagens como “invisíveis” aos olhos americanos por não falarem o inglês corretamente. Versa sobre perdas; perdas terríveis. Sobre aprendizados e conquistas, lentas, suaves e profundas.
Passagens magistrais serão inesquecíveis, como o trabalho de manicure numa senhora amputada, ou o porquê crianças vietnamitas são chamadas por nomes terríveis. Ou, ainda, a importância da palavra “desculpe”. E alguém se encontrando e encontrando alguém numa fazenda de tabaco. Ou, emocionatemente, a volta de um feto num sonho.
De forma bastante criativa, de repente Vuong narra um fato diferente, estranho ao assunto que vinha abordando e, num jogo de palavras em transição, vai desvendar a dessemelhança numa ligação de história inesperada. Uma técnica literária dificil e rara, mas extremamente encantadora. Assim como ele trabalha os jogos de palavras como trocadilhos de idéias que se completam. Literariamente brilhantes, pois este é um livro para as pessoas sensíveis ou as dispostas a sê-lo.
Em mais uma incrível sacada, no terço final da obra, para nos fazer crer que o texto foi escrito por um drogado, vários trechos parecem-nos incompreenssíveis, como se resultante realmente da escrita elaborada sob o efeito de narcóticos. Se assim não for. Apesar de o sexo ser tratado com poesia, transmuta-se em algo que poderia ser violento, mas é apenas colocado aqui como algo verdadeiro e fortuito. Descrições explícitas de atos em exageros de detalhes – até escatológicos - imaculam a obra apenas por destoarem de seu contexto geral.
Assim, como num grande poema, sua especialidade, Ocean Vuong, a grande revelação literária americana, brinda-nos com um pequeno compêndio de contos de sobrevivência sempre dos mesmos personagens. A sobrevivência no cotidiano. Os destroços e os resumos de um sonho.
Exatamente isso. Sobre a terra somos belos por um instante. Uma obra diferente, encantadora. Nos limites da linguagem.
Valdemir Martins
17.04.2021
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