Flávia Menezes 21/12/2023
E DE UMA COSTELA... NASCE UMA ESCRITORA.
?As Margens e o Ditado? é um livro de ensaios que foi publicado em 9 de dezembro de 2022 de uma das autoras mais misteriosas e prestigiadas da atualidade, a italiana que é conhecida pelo seu pseudônimo de Elena Ferrante.
Para mim, Elena não é apenas uma escritora e romancista talentosa, mas também é dona de uma habilidade extraordinária para manter sua identidade real bem longe dos holofotes. O que só a coloca no rol dos célebres da literatura mundial que preferiram a reclusão (seja durante o processo criativo ou após este), como foi o caso de Marcel Proust que passou as três últimas décadas da sua vida confinado em um quarto para concluir a sua obra monumental ?Em busca do tempo perdido?.
Mas esse tipo de ostracismo dos grandes escritores chega até a ser parte da mitologia da literatura, porém, o mais brilhante aqui, é que Elena vai muito adiante nessa questão do isolamento, pois de fato sequer se sabe quem ela é (e se de fato ela é ela mesmo!), o que apenas aumenta o interesse dos leitores por suas obras.
O que Elena quis trazer através desses ensaios, e que é muito diferente de uma aula sobre Escrita Criativa, é a própria subjetividade da sua escrita.
Logo no início, Elena nos faz compreender algo muito singular de sua personalidade que é o gosto pelos limites e a organização, colocando-o em seguida em contraste com o seu desejo pela desordem quando infringe todas as normas e expectativas ao deixar que suas histórias sigam rumos tão diversos, que não tenham a mínima obrigação de seguir nenhum tipo de coerência ou coesão textuais.
?As margens e o ditado? uni três conferências realizadas em 2020 e que fizeram parte do Eco Lectures, um projeto do Centro Internazionale di Studi Umanistici Umberto Eco, que foi idealizado pelo próprio Eco no início deste século, na Universidade de Bolonha.
Por ordem de apresentação no livro temos:
1) ?A caneta e a pena?: neste capítulo somos conduzidos pela história de vida da autora, que descreve de forma poética e sentimental sobre o seu processo de alfabetização onde, entre os limites geográficos das linhas e páginas e a conquista da liberdade através do processo criativo, tem-se um processo de cisão que dará forma a duas Elenas: a Ferrante (persona) e a Greco (personagem). Aqui Elena conceitua o que é a margem (imagem gráfica) do ditado (códigos gráficos), dando um mergulho em águas mais profundas no que compõe uma palavra (ou a letra) para falar sobre a construção de uma escritora, indo ao cerne da prática literária desenvolvida por mulheres, daquela que é exercida por homens, ao longo da história.
2) ?Água Marinha?: neste capítulo, Elena fala com muita maestria sobre a concretude versus conceito, descrevendo com sensibilidade seu processo de descoberta sobre o uso das descrições, onde ela foi percebendo (conforme se dava a maturidade da idade e como escritora) que, quanto mais ela buscava uma descrição minuciosa de algo, mais se distanciava dele, percebendo assim as armadilhas da descrição, que ao mesmo tempo que pode confere ao leitor a exatidão de algo, ao mesmo tempo, se distancia das emoções que envolvem esse algo a ponto de lhe conceder tanta importância que passou a ser parte fundamental em uma narrativa.
3) ?Histórias, eu?: este é um capítulo em que Elena nos fala sobre a formação da identidade da escritora mulher. É belo quando ela fala sobre as influências de outras escritoras mulheres que moldaram sua própria escrita, mostrando o poder que esse feminino tem de evidenciar a essência da escritora.
4) ?A Costela de Dante?: através das figuras cristãs de Eva que foi criada a partir da costela de Adão, mas também referenciando à obra de Dante, Elena vai refletindo sobre as diversas leituras que fez sobre a obra do autor em diferentes fases da vida, tecendo uma análise sobre a metalinguagem e as figuras de linguagem que encerra este livro nos revelando um quadro final sobre a experiência da escrita que vai desde a parte concreta do ato de pegar a caneta e começar a escrever em um papel, até a sua mais complexa construção de sentidos.
Muito embora este não seja um livro que ensine o leitor sobre a arte de escrever, eu penso que todos aqueles que possuem esse belo dom nas veias poderá se beneficiar ainda mais, porque aqui, ao nos colocar diante do desenvolvimento da Elena escritora até atingir a sua maturidade na escrita, vamos refletindo sobre o nosso próprio mundo, singular e individual, para compreender do que a nossa própria escrita se compõe, até conseguirmos dar forma a nossa identidade de escritores, que ora se funde e ora se fragmenta da nossa identidade de persona.