Andreia Santana 15/02/2024
Uma Penélope de gelo e pesar
Qual é o peso da história familiar na vida de uma pessoa? É a Ales, do vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2023, o norueguês Jon Fosse, é um romance que materializa em frio e solidão as dores que passam de uma geração para a outra.
Signe lamenta há anos a perda do marido, Asle, desaparecido em uma noite de tempestade ao sair para checar seu barco no píer da cidade onde o casal vive, na Noruega. Asle, por sua vez, sentia uma atração irresistível pelo mar e pelo fiorde próximo à sua casa, tanto por ser descendente de um povo com forte ligação com o oceano; quanto por ter herdado o mesmo nome de seu tio-bisavô, um Asle do passado, morto por afogamento aos 7 anos, ao tentar resgatar um barquinho de brinquedo ganho de presente de aniversário. Os dois Asles herdaram seus nomes a partir de um anagrama do nome de Ales, a matriarca da família e tataravó do Asle sumido depois de adulto.
Signe, sozinha na casa onde morava com o marido, herdada dos antepassados dele, repassa incontáveis vezes a história do desaparecimento de Asle, situação para a qual ela nunca encontrou explicação e por isso jamais completou o ciclo de luto pela perda do companheiro. Nunca houve um corpo, só o barco a deriva nas proximidades do fiorde. Uma cena de solidão e desolação imensas.
Ela também repassa a memória do primeiro encontro dos dois, a decisão de se casarem, o quanto a natureza calada do marido era estranha para ela, que ainda assim aceita conviver em um quase silêncio quebrado, raramente, por diálogos banais e repetitivos.
Enquanto Signe reconstrói a última cena vivida ao lado de Asle infinitas vezes, o leitor vai decifrando as histórias dos familiares da matriarca Ales, que inicia tanto o clã quanto a maldição que parece pesar sobre a família. Os descendentes de Ales eram encimesmados, fechados em si mesmos, mais capazes de conexão profunda com a paisagem do que com outros seres humanos.
A angústia da solidão de Signe é física, porque na medida em que avançamos na história, percebemos o distanciamento emocional entre ela e o marido. E o quanto essa mulher paralisou a própria vida em eterna espera. Uma Penélope de gelo e pesar.
O romance de pouco mais de 100 páginas é escrito em fluxo de consciência, sem parágrafos e mudanças de capítulo, de um só fôlego, como se o leitor estivesse dentro da mente de cada personagem. A história também não é linear, antes vai e volta no tempo, alternando passado e presente; muda de voz, ora ouvimos Signe, ora Asle, ora o narrador relembrando a vida de Ales.
A história – e a prosa onírica de Jon Fosse - é lírica, dolorosamente triste, intensa e emotiva, mas de uma forma contida, quase gelada.
Não se espante se deixar escapar uma lágrima ao chegar na última frase. Fosse não é considerado um dos maiores autores da sua geração à toa.
Ficha Técnica:
É a Ales
Autor: Jon Fosse
Tradutor: Guilherme da Silva Braga
Editora: Companhia das Letras, 2023
112 páginas
R$ 58,31 (livro físico, Amazon), R$ 34,90 (Kindle) e R$ 64,90 (site da editora)
*Livro resenhado para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. É a Ales foi o livro 10 do desafio.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/