AndreTaff 16/10/2023Muito bom livroA minha lista de futuras leituras nunca esteve maior, mas confesso que o respeito que tenho a ela é parco e inconstante. Alguns livros estão lá há anos, enquanto outros furam completamente a fila logo que surgem na lista. E eu gostaria de dizer que Jon Fosse já estava no meu radar há tempos, que eu havia lido pelo menos o que já havia sido publicado dele em português, mas eu estaria mentindo. Peguei pra ler a novela "É a Ales", escrita por Fosse, sem saber nada sobre o livro e quase nada sobre o autor norueguês, motivado unicamente pela notícia de que ele ganhou o Nobel de literatura na semana passada.
"É a Ales" é um livro, a princípio, um pouco estranho. Frases muito longas pontuadas quase que exclusivamente por vírgulas, em que passado e presente se confundem e se misturam, podem afastar muitos leitores. Além disso, algumas ideias se repetem muitas vezes, muitas vezes até frases inteiras. No entanto, passado o estranhamento inicial, fiquei hipnotizado pela leitura. Fosse escreve muito bem, e a fluidez do texto é impressionante, mesmo levando em conta essa auto-imposta estranheza.
Na história, a protagonista Signe reflete sobre o desaparecimento de seu marido, Asle, que havia saído para passear de barco em um Fiorde em 1990. (Um Fiorde é uma entrada do mar entre montanhas, causada pelo erosão realizada por uma geleira.) Signe despeja uma torrente de pensamentos sobre o desaparecimento em cima do leitor, revivendo aquele dia, ao mesmo tempo que continua no tempo presente. A linha da narrativa oscila no tempo, chegando a antepassados de Signe, que moravam na mesma casa, próxima ao mesmo Fiorde.
Terminada a leitura, ficou a impressão que o texto de Fosse é mais profundo que a simples interpretação básica do que foi escrito. E eu geralmente sou rápido em criar interpretações elaboradas para as mais diversas histórias (afinal, quase tudo o que publico aqui vai nesse sentido), mas dessa vez os significados subliminares me escapam. É óbvio que existe alguma coisa abaixo da superfície das palavras, mas que é, ao menos para mim, pelo menos em parte inatingível. Talvez seja sobre isso que os críticos estejam falando quando dizem que Fosse se aproxima de dizer o indizível. Nesse caso o indizível é provavelmente a dor obsessiva do luto, a presença constante dos mortos entre os vivos, através das memórias, dos impactos que causam.
Interessante notar que alguns temas atravessam épocas e culturas completamente diferentes. A cena de Signe esperando por Asle voltar do passeio no Fiorde:
"[…] ela está ao relento, na chuva, na escuridão, e está ventando, e faz frio, e ela não pode ficar parada ao relento, ela pensa, mas ele não veio para casa. E onde ele está? O que foi feito dele? Ele foi ao Fiorde no barco dele, mas ainda não voltou, e ela está preocupada com ele, será que pode ter acontecido qualquer coisa?, ela pensa, por que ele não vem?, mas ela pensa assim com muita frequência, ela pensa, praticamente todos os dias, porque todos os dias ele sai no barco, é o que acontece, e ela está quase sempre preocupada com ele e pensa que ele deve voltar logo, ela pensa. E será que hoje é diferente? Claro que não há como saber, ela pensa. Afinal, tudo está como antes. Tudo está como antes."
Me lembrou de uma passagem de "Mar Morto", de Jorge Amado:
"Só Lívia, magra, de cabelos finos colados ao rosto pela chuva, ficou diante do cais dos saveiros olhando o mar. Ouvia os gemidos de amor de Maria Clara. Mas seus pensamentos e seus olhos estavam no mar. O vento a sacudia como se ela fosse um caniço, a chuva a chicoteava no rosto, nas pernas e nas mãos. Mas ela continuava imóvel, o corpo atirado para a frente, os olhos na escuridão, esperando ver a lanterna vermelha do Valente cruzar a tempestade, iluminando a noite sem estrelas, anunciando a chegada de Guma."
Em ambos os casos, é a mulher esperando o homem, que atende ao chamado irresistível do mar. O mesmo tema - o chamado do mar sobre os homens - aparece em muitas outras histórias, como em "O Velho e o Mar" de Hemingway, e até em "Moby Dick", de Melville.
"É a Ales" não é um livro convencional, mas as reflexões que provocou em mim, tanto aparentes quanto subliminares, são agudas e profundas. É um daqueles livros que nos acompanham, invocando memórias em momentos quase aleatórios. Não teria competência para afirmar se o Nobel foi merecido, mas a minha primeira impressão com Jon Fosse foi excelente.
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