Liar1 10/05/2024
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Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho e que, afinal, nada mudara.
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Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava em absoluto.
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Depois de outro instante de silêncio murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez um dia, pelos mesmos motivos, eu a decepcionaria.
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- Nunca vi uma alma tão empedernida quanto a sua. Os criminosos que aqui estiveram diante de mim sempre choraram diante dessa imagem da dor.
Ia responder que isso acontecia justamente porque se tratava de criminosos. Mas pensei que, afinal, eu também era como eles. Não conseguia habituar-me a esta ideia.
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Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural.
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- No que se refere a este tribunal, a virtude negativa da tolerância deve transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada, da justiça. Sobretudo, quando o vazio de um homem, assim como o que descobrimos neste homem, se torna um abismo onde a sociedade pode sucumbir.
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Poderia ter descoberto que pelo menos em um caso a roda se detivera, que nesta irresistível premeditação o acaso e a sorte, por uma única vez, tivesse mudado alguma coisa. Uma única vez! De certa forma, creio que isto me bastaria. Meu coração faria o resto.
O fato de a sentença ter sido lida não às cinco da tarde mas às oito horas da noite, o fato de que poderia ter sido outra, completamente diferente, de que fora determinada por homens que trocam de roupa e que fora dada em nome de uma noção tão imprecisa quanto o povo francês (ou alemão ou chinês), tudo isto me parecia tirar muito da seriedade desta decisão. Era obrigado a reconhecer, no entanto, que a partir do instante em que fora tomada os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios quanto a presença desta parede ao longo da qual eu esmagava meu corpo.
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Em resumo: o condenado era obrigado a colaborar moralmente. Era interesse seu que tudo corresse sem contratempos. Era também obrigado a constatar que até aqui tinha tido sobre todos estes problemas ideias que não eram certas.
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Em todo caso, eu talvez não estivesse certo do que realmente me interessava, mas estava totalmente certo do que não me interessava.
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- Não tem então nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer todo por inteiro?
- Sim - respondi.
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Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. Também eu me senti pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por sentí-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era.