Kizzy 20/03/2019
Uma parábola de muitas camadas
“A pérola” é uma parábola (foi assim chamada pelo autor inclusive), escrita no ano de 1945 a respeito da um indígena que descobre uma grande pérola com a intenção de usar seu valor para pagar cuidados médicos para salvar o próprio filho de uma picada de escorpião, e que, depois de ver o filho curado se incutido da ambição de continuar com a pérola e tudo que esse dinheiro pode proporcionar. Esse é o tema central da questão moral da parábola, porém, na minha opinião, discute conceitos e valores que vão muito além do maniqueísmo de apontar a ambição de Kino como má e responsável por toda sua desgraça.
John Steinbeck desenvolve um conto de pouco mais de cem páginas onde consegue discutir diversos papéis, características e contexto social de sua época, colocando pautas que lidamos intimamente ainda hoje. Tudo em uma linguagem poética, de estética delicada e denotando a “inocência” tão característica que os índios eram e ainda são historicamente retratados pelo ponto de vista do homem branco. Quase como se o “conquistador branco” tivesse chegado e tirado do índio a natureza inocente e infantil em que o mesmo vivia. Desta forma, quando o índio almeja a mesma vida do homem branco, ele está, portanto, se corrompendo.
À parte de todas as situações adversas e motivos “moralmente aceitáveis” que levaram Kino a encontrar a pérola, a partir do momento em que ele decide ter acesso ao dinheiro mesmo já tendo curado o filho (sem antes duvidar da própria sabedoria do seu povo), é quando o indígena decide que tem o direito e o desejo de acessar aquilo que era caraterístico do homem branco (educação, bens materiais, armas). Esse é ponto em que que sua “corrupção” se determina e, portanto, sua vida cai em desgraça.
Só essa já é uma discussão moral e social. A ambição é sempre maléfica? Tem o ser humano o direito de sair do ciclo social e almejar outros futuros ou essa atitude quebra com as suas raízes e faz infeliz a ele próprio e sua comunidade? Porque a comunidade reage tão mal a ver uma pessoa saindo do seu padrão? É porque enxerga os perigos da corrupção de valorizar os ideais culturais do invasor ou é porque gostaria de estar no lugar do outro? São realmente discussões colocadas de forma magistral em um conto tão curto.
Além de todo o valor da parábola, não posso deixar de destacar os demais conceitos que o autor descreve de forma tão rebuscada. Como é de se esperar do homem de sua época, John Steinbeck descreve o conceito de bem X mal no processo de “descobrimento”. O “mal” na figura de vilão do invasor branco, expresso na figura caricata, gananciosa e moralmente superficial do médico, descrito através de seus hábitos burgueses superficiais e puramente de aspetos da aparência social “civilizada”. Já o “bem” na figura de Kino e sua família. Inocentes e desprotegidos das “verdades” do mundo.
O racismo e a destruição da cultura indígena também são retratados no sentimento de medo, ódio e desvalorização de si próprio que Kino vive toda vez que precisa entrar em contato com um homem branco “Kino sentia ao mesmo tempo fraqueza, medo e cólera. A cólera e o terror se juntavam”. Expressa também o conformismo impelido ao seu povo nas palavras de seu irmão quando Kino tenta vender a pérola e injustiçado “É difícil saber, Kino. Bem sabemos que somos roubados em tudo desde que nascemos até que morremos... Mas vamos vivendo.
A dominação cultural e indicativo de que Kino almejava valores externo à sua comunidade é também fortemente evidenciada em seu desejo vigoroso de se casar na igreja cristã, em contraponto a toda a descrição poética e repleta de significado das cantigas indígenas e sonhos premonitórios que a personagem apresentava. Passando também pela corrupção da igreja cristã, o autor relata todos os paradoxos da invasão não apenas territorial, mas também de extermínio dos costumes dos povos nativos.
Por último destaco a caracterização do papel social da mulher. Descrita como a heroína forte, paciente e moral, mas que sabe do seu papel de coadjuvante no conceito de sua unidade familiar e, consequentemente da sua comunidade. Apesar de profundamente arraigada no contexto cultural de sua época, contexto esse infelizmente ainda presente em grande medida nos dias atuais, o autor consegue ser poético e muito incisivo da no conceito da mulher como ponto de equilíbrio social e conciliador familiar. Sobre a esposa de Kino o autor descreve: “Embora não compreendesse bem essas diferenças entre homem e mulher, sabia delas, aceitava-as e precisava delas”.
Concluo dizendo que, ainda que se queira analisar a parábola baseado apenas na discussão moral central de, Ambição X Necessidades básicas da vida, o conto já seria sim digno de leitura e merecedor de todo reconhecimento que obteve em sua publicação. Porém, se as discussões dos conceitos e camadas secundárias que o livro coloca forem consideradas, com certeza o resultado da leitura será muito mais rico e engrandecedor.
“O avô de Kino comprara a embarcação e tinha dado ao pai e, assim, ela fora a ter às mãos dele. Era ao mesmo tempo uma propriedade e uma fonte de comida, porque o homem que tem uma embarcação pode garantir a uma mulher que ela comerá alguma coisa. É o baluarte contra a fome”