de Paula 03/10/2020
O orgulho americano, ou uma sátira sobre isso
Quando conheci o livro, pensei ser um daqueles escritos após a obra cinematográfica, principalmente pelo filme ser tão conhecido e adorado. Fiquei muito curiosa em saber como a narrativa poderia me surpreender e me arrebatar tanto quanto o clássico estrelado pelo Tom Hanks.
Por isso, primeiro eu vou relatar a minha experiência com o filme. Sempre quis assistir por curiosidade do que seria esse contador de histórias. Amei cada aspecto do filme, considerando que o personagem é de uma inocência e sensibilidade que falta a muitos "normais" pelo mundo. Sua falta de conexão com a realidade, ou o significado por trás dela, me tocou demais e eu me apaixonei pelo Forest Gump do Tom Hanks. Achei uma obra espetacular, com planos de fundo históricos e um personagem revolucionário, considerando sua origem sulista, além de desapegado financeiramente. Tinha esse filme em alta conta, até hoje.
Li o livro e, infelizmente, tudo o que eu gostava no filme foi "desmascarado". Com a quebra da narrativa, pois o livro é muito mais satírico e irônico, toda a romantização do filme parece sem graça e politicamente correta. O objetivo do autor fica claro nas primeiras páginas, que é mostrar que o "idiota" patológico não é necessariamente o único idiota da história. Há muitas idiotices por aí, e muitas são ironizadas pelo Forrest do livro, que não é tão apaixonante quanto o do filme, nem um pouco inocente quanto o do Tom Hanks. Na realidade, a narrativa tem o propósito de questionar todas as condições e instituições estadunidenses, colocando em xeque decisões tomadas pelos inteligentes, pelo ponto de vista do idiota.
Não é oculto o desejo do autor de recorrer ao personagem bobo para construir a narrativa, na realidade, em vários momentos do texto são citados os livros com essas temáticas e a comparação dessas narrativas com Forrest Gump. Há um quê de fantasia na história, porém, tudo se encaixa com propósito de atingir todas as entidades respeitadas e veneradas, seja no esporte, educação, inteligência militar ou espacial, política, musical, enfim, tudo é satirizado, tudo é questionado, tudo é criticado.
Outro ponto importante é que chamam o Forrest literário muitas vezes de "idiot savant", quando podemos perceber com os avanços da psicologia desde 1986, que o real diagnóstico do protagonista poderia ser Síndrome de Asperger, um leve grau de autismo, já que as descrições dessa condição são bem semelhantes a atitude do personagem. De fato, é muito ofensivo sair chamando alguém de idiota, quando muitos dos que se dizem inteligentes, são mostrados no relato do Forrest como verdadeiros imbecis.
A utilização da escrita cotidiana, com erros propositais, mostram uma veracidade maior do relato de alguém como Forrest, que não pode frequentar a educação formal, mas passou por diversas situações atípicas, pode contar sua história escrevendo como se fala.
Como estou familiarizada com a leitura de Douglas Adams, famoso pela sua sátira da ficção científica, sinto que o Winston Groom quis fazer a mesma coisa que Adams, só que utilizando a literatura clássica da jornada do herói, só que mostrando os verdadeiros valores, alguns deturpados, do protagonista. Podemos dizer que Forrest é o Macunaíma dos Estados Unidos. Um paralelo entre esses dois protagonistas é que eles parecem idiotas para as pessoas ao seu redor, porém, sua visão de mundo acabam mostrando para o leitor uma criticidade não esperada para o papel que se dispõem a entregar.
Se a sua dúvida é se o filme é tão bom quanto o livro, saiba que o livro é muito melhor, mais verdadeiro, sem se preocupar com o que vai ou não ser aceito. O filme perdeu um pouco do brilho para mim, embora ainda goste bastante, não é mais um dos meus favoritos, considerando que eu conheço a história que serviu de inspiração e ela é absolutamente melhor, não posso ficar imutável perante isso.