Ladyce 16/07/2010
Uma leitura obrigatória para se entender o Islã
Há livros dos quais não consigo fazer uma resenha logo após sua leitura porque seu impacto é tão grande que não me sinto com a distância necessária para escrever de maneira mais ou menos lúcida, sem muita rapsódia, sobre o texto em questão. Esta foi a minha experiência com o livro Infiel: a história de uma mulher que desafiou o Islã, de Ayaan Hirsi Ali [São Paulo, Cia das Letras: 2007, 496 páginas]. Há seis meses li esta biografia. Fiquei muitíssimo impressionada e emocionada com sua leitura. Passei o livro adiante para algumas amigas, cujas reações apesar de positivas não se igualaram às minhas. O volume retornou à minha casa na semana passada e agora, neste fim de semana prolongado, tive a oportunidade de reler dezenas de passagens destas quase 500 páginas só para voltar a considerá-lo uma das grandes leituras que fiz nos últimos cinco anos.
Talvez seu impacto venha também influenciado por 3 fatores de grande importância: 1) Não é ficção. É uma auto-biografia. Memórias autobiográficas. 2) Morei num país islâmico e reconheço neste livro muitos dos atos bárbaros contra mulheres que presenciei por lá. 3) Este livro, como outros que surgiram nas últimas décadas, mostra uma mulher corajosa, que tomou as rédeas de sua própria vida e liderou um movimento, uma revolta. Faltaram tais exemplos nos meus anos formativos.
Ayaan Hirsi Ali nasceu numa família islâmica, na Somália, em 1969. Teria sido simplesmente mais uma mulher a sofrer a exclusão, a violência com que mulheres são tratadas pelos rituais islâmicos e tribais, incluindo a raspagem de seu clitóris, mais comumente conhecido como circuncisão feminina, não fosse também filha de um opositor da ditadura de Siad Barré, na Somália. Seu pai, um antropólogo que havia estudado na Universidade de Columbia, nos EUA, foi preso em 1972. Por causa disso, Ayaan tem uma vida de exilada e nômade mesmo dentro de seu próprio país. Apesar de abastada, a família, por causa das atividades políticas, estava em perpétua fuga e permanecia, portanto, excluída da norma nacional, vivendo sempre amedrontada por possíveis denúncias ou perseguições. Aqui está um exemplo das preocupações familiares assim que a família deixa Mogadíscio para Matabaan. Mahad é um ano mais velho que Ayaan nascido em 1968 e Haweya é dois anos mais nova, nascida em 1971. Estes eventos acontecem antes de Mahad entrar para a escola primária.
“As mulheres lavavam roupa no lago, e os meninos nadavam lá. Mamãe tinha muito medo de que os garotos hawiye afogassem Mahad, que não sabia nadar. Livre para ir aonde quisesse por ser menino, o nosso irmão não parava em casa. Haweya e eu éramos proibidas de andar à solta. Além do mais Mahad não nos levaria com ele; não queria que os amigos soubessem que ele brincava com as irmãs.
Mahad estava cada vez mais consciente de sua honra de macho. Vovó o estimulava: tinha o hábito de dizer que ele era o homem da casa. Mahad nunca pedia autorização para sair; às vezes voltava muito depois do anoitecer e mamãe se zangava tanto que fechava a cerca. Ele se sentava lá perto, chorando, e ela gritava com frieza: Pense na sua honra. Homem não chora.” [p.50]
Mais tarde, aos dez anos de idade, Ayaan acompanha a família no exílio. A Arábia Saudita foi o primeiro pouso. Lá ela descobre um mundo ainda mais rígido contra as mulheres. E mesmo em Meca a vida muda bastante, entre outras mudanças estava a de mulheres não poderem sair às ruas sem a companhia de um homem…
“As coisas não iam bem em casa. O vínculo outrora forte entre meus pais estava se rompendo. Cada qual tinha expectativas diferentes na vida. Mamãe sentia que papai não dava atenção à família. Geralmente cabia a ela nos levar `a escola e buscar – escolas diferentes porque Mahad era menino – e voltar sozinha. Minha mãe detestava sair sem homem, detestava ser insultada na rua, encarada com insolência. Todas as somalis contavam casos de mulheres que haviam sido agredidas na rua, levadas sabe-se lá para onde, e então, horas depois, apareciam jogadas no acostamento de uma estrada, ou simplesmente nunca mais voltavam. Ser uma mulher sozinha já era horrível. Ser estrangeira, e além disso, negra, significava quase não ser humana, estar totalmente desamparada: um bode expiatório.
Quando mamãe ia fazer compras sem motorista ou marido que bancasse o guarda-costas, os comerciantes se recusavam a atendê-la. Mesmo na companhia de Mahad, alguns balconistas não lhe dirigiam a palavra. Restava-lhe pegar os tomates, as frutas e os temperos e perguntar em voz alta: “Quanto é?” Quando recebia resposta , jogava o dinheiro no balcão e dizia: “ É pegar ou largar”, e ia embora. No dia seguinte era obrigada a voltar à mesma mercearia . Mahad assistia a tudo sem poder auxiliá-la, tinha apenas dez anos” [pp. 80-81].
A Etiópia, o país seguinte de refúgio da família, mostra à Ayaan, pela primeira vez, o cristianismo. Um cristianismo monofisista, diferente do que conhecemos que foi considerada também uma heresia para os segmentos majoritários do cristianismo. Conhecido no ocidente como a Igreja copta, esse ramo do cristianismo, formulado no século V, se ancorou principalmente na Palestina, Síria, Egito e Etiópia.
“Abeh nos matriculou numa escola; as aulas eram dadas em amárico. Como só sabíamos falar somali e árabe, tudo voltou a ser estrangeiro durante algum tempo. Só quando aprendi a me comunicar foi que descobri uma coisa assombrosa: minhas colegas não eram muçulmanas. Diziam-se kiristaan, cristãs, coisa que na Arábia Saudita, seria um feio insulto: significava impuras. Confusa, consultei mamãe, que o confirmou. Os etíopes eram kufr, palavra quase obscena. Bebiam álcool e não se lavavam direito. Uma gente desprezível.
A diferença era visível na rua. As etíopes usavam saia na altura dos joelhos e até mesmo calça comprida. Fumavam e riam em público, encaravam os homens sem o menor pudor. As crianças podiam ir aonde quisessem”. [pp: 90-91]
Mais tarde vão todos parar no Quênia, onde religiões, línguas e culturas diversas se misturam. Com estas experiências Ayaan se expõe a muitas maneiras diferentes de encarar a vida e o mundo.
“Embora o meu novo colégio se chamasse Meninas Muçulmanas, muitas alunas professavam outras religiões. Quase a metade da turma era queniana, a maioria cristã, embora os quicuios também tivessem outro deus pagão. Os quenianos se dividiam em tribos que nada tinham a ver com os clãs da Somália. As tribos eram diferentes entre si no aspecto físico, falavam línguas distintas, tinham crenças próprias, ao passo que todos os clãs somalis falavam o mesmo idioma e acreditavam no islã.” [p.106]
Logo depois, influenciada por uma irmã maometana e com a necessidade adolescente de se descobrir, de descobrir sua própria identidade e talvez também por uma necessidade de direção, de limites para se sentir segura, para ter algo consistente em sua vida Ayaan se dedica ao fundamentalismo islâmico. Mais tarde, já como jovem mulher, irá rejeitá-lo.
“Pedi dinheiro à minha mãe para que a costureira da irmã Aziza me fizesse um enorme manto preto com apenas três faixas apertadas nos pulsos e no pescoço e um zíper comprido. Chagava até os pés. Comecei a ir ao colégio com aquela roupa por cima do uniforme, que me cobria o corpo magro, um véu preto na cabeça e nos ombros.
Eu vibrava com aquilo: um sentimento voluptuoso. Sentia-me poderosa: por baixo daquele tecido se ocultava uma feminilidade até então insuspeitada, mas potencialmente letal. Eu era única: pouquíssima gente andava assim na Nairóbi daquele tempo. Curiosamente, a roupa fazia com que eu me sentisse um indivíduo. Transmitia uma mensagem de superioridade; eu era a única muçulmana verdadeira. Todas as demais garotas, de pequeninos véus brancos na cabeça, não passavam de crianças, de hipócritas. Eu era uma estrela de Deus. Quando abria os braços sentia-me capaz de voar”. [pp:131-2]
NOTA: A título de curiosidade, vale lembrar neste momento, que esconder atributos femininos tais como cabelo, boca, pescoço, pernas, braços e demais partes do corpo consideradas por demais atraentes para poderem ser vistas por olhos masculinos sem que um estupro seja eminente não é uma característica única do maometismo – os judeus ortodoxos, por exemplo, tampouco permitem suas mulheres de mostrarem seus cabelos, assim como têm também outras restrições a vestimentas. As restrições muçulmanas seguem diferentes regras através do mundo islâmico, um exemplo que vem à mente é a cobertura da boca das mulheres com um véu, nos países do norte da África enquanto que o rosto aparece todo descoberto em outros países assim como no Irã.