Ludmilla Silva 20/04/2020“É como se toda a minha vida eu tivesse tomado frozen yogurt. E beijar garotos é sorvete.”Eu estava precisando de uma história leve, bonita e descomplicada como essa. Admiro o fato de ser um livro LGBT que foge um pouco da convenção dos problemas e da aceitação. Aqui o foco se dá mais no descobrimento e no romance do que em todos os problemas e dificuldades que se tem quando se é LGBT. E isso é um ponto extremamente positivo para mim, se existem inúmeras histórias clichês e simples de romance hétero porque não pode haver uma história LGBT sem complicação? O autor, Michael Barakiva, encontrou o tom perfeito quando escrevia a trama e conseguiu assim levar simplicidade e calmaria a toda a história.
Bom, One Man Guy, conta a história de Alek, um garoto de 14 anos de descendência armênia. A família toda de Alek são descendentes diretos de armênios e isso molda, por completo, a sua vida, desde ao seu modo de vestir, ao seu modo de se portar, ao seu modo de comer e também a sua educação. Pelos pais valorizarem tanto a educação dos filhos eles decidem que ao invés de o filho ter férias ele irá fazer uma espécie de curso de verão, onde ele conseguirá melhorar suas notas do semestre e passará, no próximo semestre, para a classe avançada. A família do Alek é bem rígida e tradicional, quanto a alguns aspectos, assim sendo, a educação para eles é de extrema importância, a ideia deles é que Alek melhore suas notas, fique em uma classe mais elevada e consiga boas oportunidades para a universidade. A pressão é gigantesca, e mesmo Alek não querendo ir para o curso de verão ele é obrigado a ir para não contrariar seus pais.
Alek fica um pouco chateado, pois, enquanto ele estará estudando, sua família, composta pelo seu pai, sua mãe e seu irmão Nik, passarão uma semana de férias viajando, viagem está na qual ele não poderá participar. Ele também fica bastante chateado, pois sua melhor amiga (e única amiga) Becky não participará das aulas de verão o que significa que ele passará meses, sozinho na escola. Um dos grupos que estuda durante o verão é o grupo dos “desistentes” que é, basicamente, os meninos mais velhos da escola, os descolados, rebeldes, que não estão muito preocupados com nada, e estão lá, justamente, para conseguir recuperar a péssima nota que conseguiram (ou não conseguiram) ao longo do semestre. Após um encontro inesperado com os desistentes no caminho para casa, na pista de skate, e depois de quase tomar uma surra Alek passa a prestar mais atenção em Ethan, um dos desistentes, um menino um pouco mais velho que ele, que o ajuda na briga com o amigo.
Alek começa a ficar mais ‘obcecado’ por Ethan quando ele passa a sentar do seu lado na aula de Álgebra, ele quer agradecer pela ajuda que ele deu no outro dia, mas não tem coragem de fazer isso, então tudo que faz é ficar admirando ele de esguelha. A relação deles começa quando Ethan o elogia por um comentário feito em classe e se intensifica no outro dia quando Ethan acaba convencendo Alek a ir para Nova York com ele. Essa viagem é super divertida e incrível de se ler. Ethan tem experiência viajando e sabe inúmeros truques perspicazes, como, por exemplo, andar de trem sem pagar nada e gastar menos de 15 dólares ficando um dia todo em Nova York. Chegando na cidade eles vão ao show de Rufus Wainwright no Central Park, e é a primeira vez que Alek vê, casais gays agindo normalmente: ficando de mãos dadas e se abraçando. E ele fica impressionado com aquilo, quase como se nunca pensasse ser possível aquela liberdade toda, é um momento bastante interessante de se ver. Ethan e Alek se divertem bastante até Alek ficar chateado por achar que Ethan tinha soltado um comentário homofóbico, mas depois Ethan esclarece que é gay e tudo começa a fazer sentido na cabeça de Alek.
É muito bonitinho ver o processo se entendimento e aceitação de Alek. Não é algo preocupante e paranoico como: “meu deus eu não posso ser gay” e “o que meus pais vão pensar disso?” ou “será que eles vão me aceitar?”. Eu entendo que essas perguntas fazem parte da vida de uma pessoa LGBT, mas aqui no livro é tudo muito simples como: “espera...acho que estou gostando de Ethan”. E este processo de descoberta é desencadeado pela amiga de Alek, a Becky. Eu queria muito ressaltar como eu amo a Becky, como ela tem uma personalidade incrível, como ela é divertida, irônica e uma amiga super compreensiva e solidária. Ela e Alek passavam muito tempo juntos e isso fez com que ela começasse a desenvolver um pouco de sentimentos por ele, o que, obviamente não foi correspondido. Quando ela descobriu que Alek e Ethan estavam passando muito tempo juntos ela logo entendeu tudo. Eu amei como ao invés de ficar chateada com o “fora” ela logo foi super compreensiva e levou na esportiva, e ela foi o pontapé inicial para Alek entender o que estava sentindo em relação a Ethan. A personalidade dela é incrível, e eu amo como ela adora o casal, e faz de tudo, ao longo do livro para garantir que eles fiquem juntos.
Eu adoro o Ethan e o grupo de desistentes. Eu entendo o Alek achar que o Ethan era homofóbico, até porque se formos pensar em “estereótipos” o Ethan seria o típico garoto babaca e descolado que humilha todos, mas eu gosto como tem uma leve quebra de paradigma aqui e como apesar da aparência e dos gostos, o Ethan é um menino super bacana, compreensível e legal. Ele é solidário com Alek antes mesmo deles se conhecerem (o defendendo da briga) e continua mostrando traços de como é um cara divertido e aberto quando leva Alek a Nova York e quando o leva para a sua casa. Uma das características que mais admiro em Ethan é o fato dele ser super seguro quanto a quem ele é, quanto a onde ele quer chegar e com quem, quer estar, isso é uma característica que faz dele um personagem super autêntico e cheio de personalidade. O grupo de desistentes super acolhem e respeitam o fato de Ethan ser gay, eles nunca o excluíram e o diminuíram por isso, e apesar de o grupo ter inúmeros problemas o preconceito não é um deles. Eu adoro como eles zombam do Ethan quando o Alek chega perto, assim como fazemos quando estamos em um grupo de amigos e o crush de um deles chega perto; eu adoro como o conceito de piadas quanto a sexualidade dele é divertido e saudável, e quanto eles foram acolhedores com o Alek quando ele começou a se sentar junto do grupo.
Uma coisa que me impressionou bastante neste livro foi a maturidade dos personagens. É muito interessante perceber que eles que tem na faixa de 14 a 16 anos e são bem mais maduros e compreensíveis do que pessoas mais adultas e mais velhas. Toda a questão da homossexualidade foi lidada de forma tão simples, madura e rápida que fez meu coração ficar quentinho. Ver aqueles “marmanjos babacas” aceitando o amigo como ele era foi lindo, ver a Becky também, que tinha acabado de lidar com uma rejeição amorosa, transformar aquela dor em aceitação em compreensão foi lindo também, me fez ter um pouco de inveja do mundo dos livros onde tudo é como deveria ser, se a realidade fosse lidada da forma como foi lidada aqui, pelas crianças, tudo seria diferente.
O meu maior problema com este livro é a família do Alek, eles são muito insuportáveis, a ponto de me fazer querer revirar os olhos toda vez que eles apareciam. E não falo quanto a cultura armênica, muito pelo contrário, essa foi uma das minhas partes favoritas do livro. Confesso que não conhecia a Armênia e que não sabia nada sobre a cultura deles, foi interessante descobrir um pouco mais sobre a sua história (a do genocídio, por exemplo, que foi completamente esquecida por todos os professores e livros de história) e sobre a sua cultura. Fiquei muito investida, logo procurei saber mais sobre a história deles e sobre a culinária deliciosa, inclusive admito que salvei várias receitas que eles faziam no livro para experimentar depois. Então a parte da cultura e da descendência armênia entra, para mim, como uma das partes favoritas do livro, junto como o romance de Ethan e Alek. Não sei se o autor é armênio ou não, só sei que ele conseguiu trazer uma mensagem muito forte e autêntica sobre esse povo e sobre a sua cultura, estes foram aspectos essenciais que deixaram o livro único.
Continuando a respeito da problemática da família de Alek: o que mais me incomodou no livro foi como a família, com foco, especialmente, para os pais, mascaram a ignorância, a falta de educação, o preconceito e o ódio por meio de sua cultura e de suas raízes. E nem falo do fato deles serem super fiéis e ligados a sua descendência e a sua nação, eu acho isso lindo, de verdade (não saberia dizer como é ser tão ligada a cultura e a um país já que é difícil ter um sentimento de pertencimento em um Brasil problemático e doentio como esse) mas eles usam, do meu ponto de vista, esse amor pela Armênia como uma desculpa para legitimar os piores tipos de discursos, pensamentos e ações que eles poderiam ter. É tudo muito velado. A história já começa, com a família, sendo extremamente rude e ignorante com a garçonete do restaurante, e aqui eles usaram como desculpa o fato da comida armênia e dos costumes serem diferentes dos americanos, mas o que eles estão fazendo aqui é apenas ser rudes e grossos com a menina sem necessidade alguma. A família, passa o livro todo falando mal dos tal “americanos” (vale lembrar que eles são uns, risos) e dos seus costumes, e pratos e falam mal, até mesmo, dos outros amigos armênicos, usando como desculpa o fato da cultura deles ser tão diferente e tradicional, e novamente aqui eles estão apenas legitimando o ódio, a ignorância e o distanciamento usando a cultura como um disfarce.
Mas é possível perceber isso mais claramente no final do livro quando os pais têm que lidar com o Ethan e com a Nana. Eles falaram desde o começo que não tinham problema com o fato do filho ser gay, até porque eles tinham um amigo que era gay (gente, pelo amor de deus né, argumento favorito de qualquer homofóbico é que tem um amigo gay) o maior problema deles era o fato do Ethan ser uma “má influência para Alek” e mesmo após o jantar, após eles verem que o Ethan era um amor de pessoa, após ele ressaltar que não queria prejudicar o Alek nem nada, eles continuaram usando o mesmo argumento caído. E isso não colou para mim, ali o maior problema são os pais serem homofóbicos e não quererem aceitar o filho gay, e para mascarar esse “ódio” e esta “decepção” eles usaram o argumento da má influência. A mesma coisa vale para a namorada do Nik quando eles começaram a odiar ela por ela ter descendência turca (os turcos que praticaram o genocídio contra os armênios). E eu entendo a dor que eles sentiram pelo genocídio, por ter perdido os familiares em um acontecimento tão triste a abominável, mas não entendo porque queriam culpar a menina, que nem culpa tinha de algo que aconteceu a centenas de anos atrás, e mesmo a Nana e o Alek trazendo um discurso super coerente e verdadeiro sobre a situação, eles continuaram não aceitando bem a situação.
Então é isso, o meu maior problema com este livro é justamente a hipocrisia da família de Alek. Não sei se o autor os escreveu assim de propósito ou se é algo da minha cabeça, mas achei este um elemento bem sutil e discreto que não é muito fácil de perceber se a gente não parar um pouco para refletir a respeito. Eu vi aquela família como um tipo de família que mascará o ódio e o preconceito por trás de qualquer coisa que podem encontrar, como por exemplo a religião, é hoje em dia, o que mais tem é gente usando crenças e costumes bonitos para justificar e legitimar discursos de ódio e preconceito. Senti os pais dele como pessoas muito artificiais e difíceis de lidar, eu nunca que gostaria de estar perto deles. E entendo demais a influência que eles exercem em ambos os filhos, principalmente em Nik, mas foi legal ver os dois enfrentando os pais quanto ao namorado e a namorada, pois mostrou que eles não são apenas bonequinhos controlados pelos pais, mostrou que eles conseguem se desvencilhar daquelas ideias e pensamento errôneos e problemáticos que a família carrega e que podem no futuro ser responsáveis pela transformação daquela família.
A questão da família, apesar de ter sido a parte que mais odiei, para mim não estraga a experiência da história, achei que foi um ponto bastante interessante para o livro. Foi como se tudo estivesse lindo e perfeito nas aparências, mas se você parar para analisar e refletir um pouco mais sobre a narrativa você achará situações bem problemáticas, que é esta ignorância velada da família, mas na realidade, acredito que este fato, deixa o livro cada vez mais instigante e empolgante. No geral eu amei demais o livro, sei que preciso reler esse livro quantas vezes achar necessário, porque ele é um livro muito leve e bonito que trata o romance de uma forma tão autentica e natural que faz a gente se derreter toda. Vale a pena ler o livro pelo romance dos dois, pela incrível personagem que é a Becky, pelos passeios a Nova York, pela cultura armênia e pela experiência que é ler um livro tão tranquilo e diverso como esse. Recomendo de olhos fechados!
“Quando Alek aprendeu sobre a Guerra de Troia e, consequentemente sobre Helena de Troia ter sido o rosto que lançou mil navios, achou a história totalmente inacreditável. A ideia de que uma única pessoa pudesse atrair, inspirar ou provocar centenas de homens a arriscar a vida e a liberdade parecia o tipo de hipérbole mitológica que nunca acontecia no mundo real. Mas, enquanto beijava Ethan, Alek compreendeu por que todos aqueles guerreiros gregos antigos entraram naqueles navios e navegaram para o outro lado do mundo.