spoiler visualizarThales 23/12/2020
Vocês estão prontas crianças? Não.
"O casamento" tem uma história que vai muito além das suas páginas. A própria existência do livro e tudo que o ronda é um dado fundamental per se. Esse foi o primeiro livro a ser censurado pela ditadura, em 1966, teve sua festa de lançamento adiada pela morte de Mário Filho - irmão de Nelson - e gerou uma troca de indiretas entre Nelson e o jornal O Globo em suas páginas. A publicação, junto de vários pares na imprensa, defendeu a atitude do ministro da justiça, responsável pela censura, e Nelson, colunista do jornal, foi lá nas páginas dele vociferar contra esse circo. Dá pra ter uma ideia do furdunço, né?
Nada, absolutamente NADA do que eu diga vai adjetivar corretamente "O casamento". Profundo, doentio, nojento, violento, freudiano, abjeto. É daí pra baixo. Realmente tem que ter estômago pra encarar. Mas Nelson não faz isso por fazer, ele não utiliza recursos escandalosos pra chamar atenção e gerar engajamento. Ele vai nos extremos da relação humana pra provar suas teses e descortinar o pior lado da sociedade. A sombra, o que não deve ser comentado, o que ninguém tem coragem de dizer. Nenhum outro escritor no Brasil, quiçá no mundo, foi tão feliz nessa empreitada.
Sobre a narrativa em si, tanto o casamento como o beijo que gera toda a celeuma são absolutamente secundários. A história toda se passa na véspera do casório, quando o Dr. Camarinha - gineco da noiva - resolve contar pro Sabino - o pai da noiva - sobre o ocorrido entre Teófilo - o noivo - e Zé - secretário do doutor -, e Nelson nos faz viajar pela relação entre os "núcleos" da narrativa, o passado dos personagens, a psicologia de cada um. A coisa não é nada linear: ora estamos avançando pelas horas daquele dia, ora nos perdemos em flashbacks essenciais para entendermos como chegamos até ali. E em nenhum momento a gente se perde na dezena de pessoas envolvidas, seus pares, o vai-e-vem temporal. Nelson é muito habilidoso nesse sentido.
E bota habilidade nisso, viu. Nem só de imaginação se faz um livro tão polêmico. É necessário saber fazer. A gente vai lendo sobre fetiche por meia, sudorese, incesto, registros detalhados de cusparadas e mesmo assim ficamo doido pra querer saber o rumo da coisa. Pior que Nelson é a gente que dá trela pra ele rss
E eu juro que não tô exagerando no despudoramento da obra. Peguemos a história da Noêmia, por exemplo. Personagem, teoricamente, secundária, mas fundamental pros dramas da família. Ela é a amante de Xavier, casado com uma leprosa cega que, aparentemente, não pode manter relações sexuais com o marido. Com uma fixação por Sabino, ela não pensa duas vezes quando ele a convida prum quarto de "motel". Não bastasse ser humilhada na hora do sexo e ofendida pelo chefe mais tarde no dia, ela ainda termina, no meio tempo, com Xavier. Quando ele desconfia do motivo, a mata de uma forma visceral. E Nelson faz questão de descrever detalhadamente a cena: cada apunhalada, cada estocada do punhal de Xavier, cada marca que ele deixou em Noêmia - com destaque para a cruz na vagina. Quando volta pra casa, pensando se realmente sua "amada" teria tido um caso com Sabino, ele é recebido pela mulher não só desconfiada das traições do marido como sedenta por "ser mulher" novamente. Como era cega, não percebeu que, quando o marido disse que estava se despindo, estava na verdade pegando uma arma. Assassinou a mulher com um tiro no meio do "sorriso", e em seguida se matou.
Outro que se "destaca" é Sabino. O grande pai da noiva, "homem de bem", de conduta ilibada, que fica doido quando descobre que o genro é "pederasta". Tinha uma paixão incestuosa pela filha - que foge quando esse a beija -, odiava a mulher, estuprou a sobrinha de 13 anos de idade no meio de um ataque epilético e, óbvio, comeu a secretária. E essa é provavelmente a grande ironia da coisa, um dos pontos que Nelson quer provar: o "homem de família" que fica pasmo com a sexualidade do genro, é, na verdade, o desgraçado da história. O coitado do Teófilo, por sua vez, tão pouco citado ao longo do livro, tem contra si "só" a homossexualidade. É a inversão da lógica dos valores, tão caro em 1966 como é para nós hoje. Nelson quer escancarar que quem bate no peito pra se vangloriar por ser "cidadão de bem", quase sempre quer, na verdade, esconder seus próprios despudores.
A frase "o homem de bem é o gângster da virtude", dita pelo Dr. Camarinha em conversa com Sabino, é o grande resumo da ópera. É a grande "moral da história". A favor do Sabino, pelo menos, temos a redenção final. A filosofia do padre vasco contida na sua ideia de "somos todos leprosos" e temos que assumir nossa doença o pegou de forma tal que ele se apresenta à polícia como assassino de Noêmia, tamanha sua culpa.
A gente ainda tem o beijo de Eudóxia na Glorinha, a relação conturbada entre ela e Antônio Carlos - que resulta na morte do rapaz -, a suruba na casa do Zé, a "adolescente misteriosa" que tira a roupa diante do monsenhor... e eu podia passar a madrugada toda contando cada causo absurdo.
Leiam Nelson Rodrigues, mas só o façam quando o psicológico estiver em dia e tiverem um bom remédio à mão.