Lucas 21/07/2018
Quando o tamanho é irrelevante: Gabo e uma metáfora da América Latina em menos de 100 páginas
Ninguém Escreve ao Coronel (1961) foi o último livro mais relevante que o então pouco conhecido Gabriel García Márquez (1927-2014) publicou antes do eternamente louvável Cem Anos de Solidão (1967). Apesar de possuírem contextos totalmente diferentes, Gabo trazia aqui o que sempre o definiu: a solidão, a decrepitude e o fantástico, tudo mesclado a um cenário permeado de lendas e crendices.
A linha narrativa é bem simples e como todas as obras do autor, não é apropriado mencionar maiores detalhes, pois é neles que reside todo o encanto natural que sua escrita causa. Aqui, tem-se a história do Coronel e sua esposa (não há nomes próprios que os definam), ambos já com idade avançada que vivem numa pequena cidade portuária, que, mesmo que inominada, é baseada livremente em locais da América Latina e do Caribe. O casal de protagonistas vive em uma situação de penúria financeira, física (a mulher sofre de asma) e espiritual: ambos tinham perdido o filho único, Agustín, que foi baleado por autoridades quando participava de uma rinha de galo fazendo panfletagens.
Esta questão da divulgação clandestina de informações é uma das tônicas do livro, pois simboliza muito bem as perseguições que ocorriam nas várias ditaduras da América do Sul e da América Central que vigoraram por quase todo o século XX. Isso também se associa às próprias ideias de Gabo, um ávido defensor destes perseguidos e é um prelúdio do que sempre seria relatado em suas obras pós Cem Anos de Solidão, que são inegavelmente mais populares. Este aspecto, de sempre se debruçar sobre as ditaduras e seu papel opressor na liberdade, também engrandece seu gênio narrativo: ao escrever sobre o fantástico, o absurdo, Gabo conseguia mensurar em sua escrita o poder que a censura e a perseguição tinham sobre os seus personagens. A sua consciência política, mesmo que não correspondesse ao ponto principal dos seus trabalhos, era algo que vinha incluso "no pacote" e que acabou por definir o seu legado de preocupação com a ignorância de outros povos e regiões à América Latina.
Impossível não falar do livro sem mencionar o seu maior símbolo: o galo, herança de Agustín e campeão das rinhas da cidade. Por ser uma lembrança permanente do filho falecido, o Coronel e a mulher vivem um dilema constante em relação à ave, já que ele daria, por exemplo, um belo jantar. O galo funciona, mesmo que não tenha sido essa a intenção do autor, como uma espécie de alívio cômico, que gera dezenas de situações engraçadas e que correspondem aos mencionados detalhes específicos que trazem o encanto da narrativa de Gabo. Mas um deles é cômico demais para ser ignorado: em todos os meses de outubro, o Coronel sofre de problemas estomacais e a forma com que esse problema é tratado na narrativa é genial.
A explicação do título reside na espera por uma carta do governo que permitiria que o Coronel se aposentasse pelos serviços prestados ao militarismo. É uma relação que lembra muito a espera de Florentino Ariza em O Amor nos Tempos do Cólera, outro excelente livro do autor publicado em 1985. Outra característica deliciosa da obra é a ligação pontual com Cem Anos de Solidão: o coronel Aureliano Buendía, um dos protagonistas da obra-prima, era amigo do Coronel e algumas lembranças de guerras em que ambos participaram aparecem na narrativa. Este ponto, inclusive, pode desconstruir a tese de que Cem Anos de Solidão veio de um lapso sensorial de Gabo: mesmo que inconscientemente, as menções à Macondo e aos Buendía em Ninguém Escreve ao Coronel foram resultado de algo maior, que acabou desabrochando cinco anos depois quando o autor inicia o grande trabalho da sua vida.
Apesar das semelhanças, Ninguém Escreve ao Coronel possui uma enormidade de diálogos, característica que foge um pouco do padrão de Gabo. Enquanto que nas outras obras aqui mencionadas o narrador onisciente assume um papel preponderante, aqui este mesmo narrador apenas conduz a narrativa. Não que não hajam várias "tiradas absurdas", mas há sim um enfoque bem maior nas falas dos personagens. É bem provável, inclusive, que, em termos absolutos, a história do Coronel supere com facilidade a quantidade de diálogos que há em Cem Anos de Solidão, que é um livro bem maior e mais profundo. A frequência dessas falas torna a obra muito dinâmica: na verdade, é um daqueles livros maravilhosos que podem ser lidos em um dia.
Seja emocionando, gerando riso ou choro, alegria ou tristeza, Ninguém Escreve ao Coronel é um dos maiores exemplos de livros que condensam em si toda a genialidade do seu idealizador. Aqui, o futuro leitor perceberá um realismo mágico ainda um pouco verde, mas pronto para a explosão que viria em 1967. E justamente por ainda não estar maduro, percebe-se um Gabo com todas as condições de ser o que foi: o maior escritor latino-americano do século XX.