spoiler visualizarNayara.Paredes 13/09/2015
RESENHA DE LEITURA – A LÍNGUA DE EULÁLIA
O livro conta a história de três amigas que vão passar as férias na casa da tia de uma delas e lá passam a ter aulas sobre algumas descobertas científicas sobre a linguagem.
Emília, Silva e Vera ridicularizam a forma como Eulália, a melhor amiga da tia Irene, fala “errado” a língua portuguesa. Irene, doutora em linguística, aproveita a deixa e explica como ocorrem os fenômenos do português “não-padrão”.
No livro alguns pontos são desmistificados. O mito da língua única é o primeiro a cair por terra quando o autor prova que no Brasil, fala-se mais do que apenas a língua portuguesa. Existem as línguas indígenas e as de imigrantes faladas em colônias espalhadas pelo país. Até mesmo a nossa língua portuguesa é bastante variada e apresenta inúmeras diferenças, sejam elas fonéticas, lexicais, semânticas ou de uso da língua.
Toda língua muda, é dinâmica. Até mesmo o tão consagrado português de Portugal sofreu profundas mudanças desde sua origem no latim. A língua varia no tempo e no espaço.
O que se define por norma padrão, português “correto” ou português-padrão, é na realidade um conjunto de convenções políticas, econômicas e sociais que determinam um modelo de língua ideal, jamais atingida plenamente por nenhum falante da língua, mas que serve como uma fôrma com a qual modelamos e educamos nossa fala e escrita para chegarmos o mais próximo possível do ideal de correto.
Quando um falante, por diversos motivos, foge muito desse modelo de perfeição linguística, é considerado como “caipira”, “jeca”, “asno”, “burro”, e outros apelidos carinhosos por parte dos gramáticos e pedantes que se julgam superiores unicamente por suporem que falam e escrevem um “português superiormente correto”.
Está mais do que provado que, apesar de ser possível atingir a quase perfeição gramatical na escrita, a língua falada não acompanha o mesmo ritmo. A escrita mantém o conservadorismo e é utilizada como instrumento de poder e manipulação. A fala é espontânea e livre, obedece a regras internas próprias da comunicação oral, mais antiga que a escrita. Até mesmo os mais cultos defensores da gramática normativa precisam esforçar-se imensamente para produzir uma fala “correta” segundo a norma, e quando assim o fazem, a comunicação soa no mínimo artificial e pedante.
Os fenômenos presentes na fala são comuns ao povo brasileiro de norte a sul do país. Tanto que o autor não fala de “erro comum” mas de “acerto comum”. As semelhanças entre a língua padrão e a não-padrão são bem maiores que as diferenças, e isso possibilita que haja a efetiva comunicação entre elas.
Sempre através da voz de Irene, o autor, depois de uma explicação que esclarece que a língua portuguesa já vem de outra que era não-padrão: o latim vulgar, explica de uma forma mais científica sobre os fenômenos comuns que ocorrem em todo o Brasil.
A rotacização é a troca do ‘L’ pelo ‘R’ em alguns encontros consonantais (cl, bl, pl, gl, fl, etc.) que não existem na língua natural falada, mas que nos esforçamos para falar porque existem na escrita do português formal. Falar “pobrema”, “Cráudia”, “broco”, “pranta”, entre outros é mais natural para a língua falada, e por isso falantes da língua não-padrão insistem em obedecer a naturalidade, não a imposição normativa. Percebe-se claramente nas crianças a dificuldade na tentativa da pronúncia do português padrão nesses encontros consonantais, e essa dificuldade continua em muitos adultos. Aliás, a rotacização é tão presente nas línguas derivadas do latim que há diversas alterações em diversas palavras de vários idiomas românticos. Bagno cita como exemplo as transformações ocorridas do latim, para o espanhol e para o português, respectivamente: ecclesia>iglesia>igreja, plaga>playa>praia.
Camões, o badalado exemplo de perfeição em língua portuguesa escreveu em “Os Lusíadas”: frauta, frechas, ingrês, pranta, pruma, pubrica, entre outros que seriam considerados pelos gramáticos como “erros grotescos”. Mas porque ninguém corrige Camões, José de Alencar, Machado de Assis ou outros escritores de nossa literatura que deveriam ter em suas obras a perfeição gramatical?
A língua portuguesa padrão possui excessivos marcadores de plural, só que o português não-padrão é enxuto e dinâmico, e elimina na fala esses marcadores excessivos. Então para que dizer: as meninas foram passear, se dizendo: as menina foi passear consegue-se demonstrar que estamos falando de mais de uma menina? Apesar da regra pedir todos os marcadores de plural e concordâncias em seus devidos lugares, os falantes de não-padrão obedecem a regra da dinâmica da língua falada, e não o conservadorismo da língua escrita.
O “yeismo” ocorre quando, na fala, transformamos o “LH” em “I”. Trabalho>trabaio, telha>teia, etc. Esse fenômeno ocorre porque na língua natural falada, esse encontro consonantal também não existe. Então para pronunciarmos o “LH” de forma “correta” temos que fazer um esforço antinatural para nos habituarmos a falar o que pede a escrita. Por esse motivo os falantes de português não-padrão seguem como sempre a tendência natural e fazem a troca.
Outra coisa que Bagno mostra ser excessivo em língua portuguesa são as conjugações verbais. No português padrão temos que decorar seis flexões diferentes em vários tempos verbais que, na realidade, não usamos no dia-a-dia. Como o português não-padrão segue a tendência de enxugar a língua, reduz essas seis para duas conjugações, separando apenas a diferença do verbo para a primeira pessoa do singular: eu canto, no restante, mantém a mesma conjugação para todas as outras pessoas: você canta, eles canta, nós canta, vocês canta, eles canta; Afinal, o número e a pessoa já estão marcadas nos pronomes.
Quando o autor coloca que na linguagem do dia a dia não conjugamos os verbos em seis pessoas diferentes, é porque essa configuração clássica do: eu, tu, ele, nós, vós, eles e suas respectivas formas é utilizada apenas na escrita bem formal. No uso coloquial de pessoas que se dizem falar o português padrão existem apenas três conjugações, e as pessoas mudam: o tu, o nós e o vós desaparecem para surgirem: você, a gente e vocês. Assim uma conjugação simples fica: eu amo, você ama, ele ama, a gente ama, vocês amam, eles amam.
A assimilação é outro fenômeno muito bem explicado pela fonética. Quando articulamos os sons para produzir a fala, a tendência é que a comunicação fique ágil e leve. Ao articularmos sons em zonas muito próximas dentro do sistema fonológico, há a tendência natural de assimilarmos e transformá-lo em um só som. Com isso palavras como andando>andano e também>tamém, e em pequenas frases como um bocado>um cado. A assimilação é uma força muito ativa em todas as línguas e continua modificando lenta e ininterruptamente as línguas nos próximos séculos.
Quando o autor coloca, pelas palavras de Irene, que “a língua voa, a mão arrasta”, é justamente para mostrar essa diferença entre essas duas formas da linguagem: a fala é rápida, dinâmica e vanguardista, está sempre na frente, e a escrita é lenta, conservadora e busca a todo custo manter a “pureza” da língua. A fala vive fazendo pressão e puxando a escrita para que ela a acompanhe, mas a escrita quer ficar presa nas suas antigas regras. Mas no fim a “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, e a escrita cede e adapta-se a fala, de forma lenta, mas as mudanças entre as diferentes épocas de uma mesma língua são incontestáveis.
Seguindo a naturalidade do aparelho fonador, os falantes de português não-padrão encontraram outras formas mais naturais e ágeis de pronunciarem os ditongos “OU” e “EI”. Nem só de encontros consonantais vivem as assimilações. As vogais “O” e “U”, assim como “E” e “I” são produzidas em zonas muito próximas, a tendência natural na fala então é um “puxar” o som do outro pra si, para harmonizar a fala. É por isso que escrevemos: “roupa, pouco” e “beijo, deixa”, mas falamos “rôpa, pôco” e “bêjo, dêxa”.
As sílabas tônicas são especialistas em modificar algumas pronúncias das vogais “E” e “O” nas sílabas pré e postônicas. Nas paroxítonas, que formam grande parte do nosso vocabulário, a sílaba tônica é invariavelmente a penúltima. Assim, quando as vogais “E” e “O” estão presentes antes ou depois dessa sílaba tônica, a tendência é que na fala pronunciemos “I” e “U”: bolacha>bulacha, avenida>avenida, ovo>ovu, leite>leiti. Esse fenômeno chama-se, segundo o autor, de harmonização vocálica.
A principal questão da assimilação e da harmonização vocálica é que ambas são muito presentes nas falas do dia-a-dia dos falantes das diversas variedades da língua portuguesa, inclusive entre os mais cultos. Porém a tendência escolar em corrigir o aluno dizendo que para “falar certo” tem que “falar como se escreve”. Como já foi mais que comprovado, a língua falada não obedece as mesmas regras da língua escrita. É preciso aprender o português padrão, porém tem que se respeitar e compreender a fala natural para abrir um leque muito maior de possibilidades linguísticas.
Esdrúxula é uma coisa estranha, fora do comum, esquisita. Mas também é o outro nome que damos as proparoxítonas. Elas são antinaturais e relação a língua falada, e por isso os falantes do português não-padrão comumente as transformam em paroxítonas, que são as palavras ditas naturais em nosso vocabulário. Então árvore>arvre, córrego>corgo, tábua>tauba. Perceba que as palavras proparoxítonas são, em sua maioria, palavras sofisticadas, utilizadas pelos falantes de “alto padrão” da língua portuguesa: tórrido, efêmero, impávido, fúnebre, etc. Enquanto as paroxítonas são palavras simples, usadas no dia-a-dia de todos. A grande parte das proparoxítonas latinas converteram-se em paroxítonas no português padrão. A tendência é que essa transformação mantenha-se ativa na formação do português do futuro. Seria o fim das proparoxítonas? Creio que não. O português padrão precisa das palavras esquisitas para continuar com o pedantismo e domínio dos ditos “cultos”.
Outro fenômeno descrito é a desnasalização das vogais postônicas. É outra tendência natural da língua portuguesa. O que parece um palavrão na verdade é muito simples: nas paroxítonas, a sílaba postônica perde a nasalização quando terminadas em “M” ou ”ÃO”: homem>home, garagem>garage, fizeram>fizero, cantaram>cantaro.
Não bastasse os diversos fenômenos linguístico que explicam as diversas variedades e tendências da língua, o autor fala sobre o arcaísmo. O Brasil fica muito distante de Portugal, e por isso não consegue acompanhar as modificações que ocorrem na língua portuguesa do lado de lá do oceano. As regiões mais afastadas dos centros dentro do nosso próprio país também passam por esse mesmo fato. O português falado em Portugal é tão diferente do brasileiro hoje devido à distância, que chegará um dia em que portugueses e brasileiros não mais se entenderão. Esses lugares mais remotos tendem a manter as antigas formas de determinadas palavras ou expressões, e podemos nos gabar de falarmos um português mais próximo do falado por Camões, do que os próprios portugueses. A população rural, e do sertão nordestino, por exemplo, falam muito: alumiar, alembrar, alimpar, alevantar, assoprar, amostrar, arreparar, avoar, etc. Essas palavras não estão erradas. Existiram no português padrão e estão grafadas n’Os Lusíadas. Só que com a mudança nas línguas, nos grandes centros essas palavras sofreram as modificações e perderam o seu antigo “a”: lumiar, lembrar, limpar, levantar, soprar, mostrar, reparar, voar. Só que as zonas periféricas não acompanharam, mantendo a forma arcaica.
Talvez o ponto mais controverso e criticado no livro é quando Bagno toca na ferida dos gramáticos: afinal, a partícula “se” pode ou não ter papel de sujeito em uma oração? Porque no Brasil há a forte tendência em escrever: vende-se casas, compra-se motos ou procura-se criminosos? Porque tanta gente, mesmo os mais cultos, “erram” dessa forma? Os gramáticos insistem em dizer que essa partícula indica o índice de indeterminação do sujeito, enquanto os linguistas perceberam que na realidade ela faz o papel de sujeito indeterminando. Semanticamente, é estranho dizermos: abatem-se mil frangos por dia (os frangos se suicidam?), Nos campos de concentração nazistas se exterminaram milhões de judeus (eles se mataram? Exterminaram a si mesmos?). E mesmos se fizermos a famosa equivalência entre a oração passiva sintética que usa a partícula apassivadora “se” (abatem-se frangos) e passarmos a uma oração passiva analítica, que transforma o “se” em um verbo auxiliar “ser” mais um particípio passado do verbo principal (frangos são abatidos), nem sempre conseguiremos o resultado desejado. Se eu for alugar casas e colocar a placa: alugam-se casas, terei mais sucesso do que se colocar a mesma oração na passiva analítica: casas são alugadas. Com certeza meus possíveis inquilinos não iriam entender a placa, e tomariam como informação como: “as casas já estão alugadas”, ou talvez “as casas alugam a elas mesmas”.
Juntamente com a assimilação, a analogia faz verdadeiras mudanças na língua não-padrão do brasileiro. Quando você faz uma analogia, você pega um elemento utilizado em uma situação e a utiliza em outra, parecendo meio que uma assimilação. Um exemplo clássico é o das conjugações verbais das crianças: se é ‘eu comi’, ‘eu bebi’, é também ‘eu fazi’, e se é ‘eu pego’, é também ‘eu sabo’ e ‘eu pido’. E se nós adultos estamos acostumados com verbos nas terminações AR, ER ou IR, o verbo “por” soa estranho, e sua conjugação é assimilada de forma análoga por “ponhar”, e sua conjugação fica mais fácil: eu ponhava, eu ponhei, etc.
Bagno explica que a língua padrão e a não-padrão na realidade não existem. O que existe é uma língua ideal representada pelas normas gramaticas, mas que nunca são 100% atingidas por nenhum falante da língua portuguesa. O que é efetivamente falado e escrito pelos falantes são diferentes variedades em diferentes graus de idealização, que vai do falante mais culto ao menos culto. O grau de “cultura” de um falante no Brasil é determinando pelo índice de formação escolar, sendo que um brasileiro só é considerado culto após ter cursado o ensino superior completo. O que ele chama de não-padrão é um conjunto de similaridades entre as diferentes variedades.
A norma padrão exerce diferentes graus de pressão para que os indivíduos tentem seguir ao máximo possível suas regras. Quanto maior o grau de escolarização e mais culto for um indivíduo, maior é a pressão que a norma faz sobre ele, quanto menor a escolarização, menor a pressão. O falante menos culto desconhece todas as regras, e esse afã de ter que falar “corretamente” simplesmente não existe.
São duas mãos: enquanto a norma padrão exerce pressão para que os falantes mais cultos sigam seu rigor, os falantes menos cultos ditam as mudanças que a norma padrão irá sofrer ao longo do tempo. A norma, por mais que seja rígida, também muda.
Compreendendo agora todos esses fenômenos linguísticos que o autor explicou, faz-se uma crítica sobre o ensino brasileiro. Os mais de 60 milhões (na época em que foi escrito o livro) de analfabetos funcionais no Brasil mostram bem o reflexo dessa pressão que a gramática normativa faz para continuar a alimentar seu controle. Fazer o aluno decorar listas de pronomes coletivos, regências e formas verbais que não se usam mais no português brasileiro (o caso do “vós”), tentar fazer com que o aluno apenas decore, e não aprenda, assimile e utilize a língua, é o que faz com que o ensino brasileiro esteja ente os piores do mundo.
É necessário repensar o ensino, fazer com que primeiro o aluno tenha domínio sobre a utilização efetiva e eficaz da língua para depois fazê-lo decorar as regras que estão em desuso no país. Fazer com que o aluno compreenda os fenômenos que ocorrem com a língua que ele mesmo fala, para que ele possa refletir e então absorver a forma “padrão” não seria mais eficaz do que tentar ensinar uma língua estrangeira (português padrão) a ele?
No fim, a norma culta, o português padrão, não cumpre seu papel de ascensão social e cultural do indivíduo. Pelo contrário, só reforça o sistema de opressão que as classes menos favorecidas sofrem e serve como um verdadeiro arame farpado que bloqueia o acesso dos indivíduos ao poder. Chamar os falantes de português não padrão de selvagens, asnos e burros é uma forma de manter o cabresto e vender o peixe: vocês precisam da nossa língua, a melhor, a correta e tem que ser essa para que sejam civilizados e humanos. Dessa forma, os que dominam a língua padrão dominam o restante que não consegue compreender esse monte de regras desnecessárias.
Perpetuar essa “violência” preconceituosa com esse ensino tradicional de gramática sem contextos e sem reflexões é continuar negando aos sujeitos o direito que eles possuem de tentar mudar sua situação, e assim mantê-los sob o julgo dos “poderosos padrões”.
O autor simplifica a linguagem dos estudos científicos e descobertas linguísticas já realizadas para que qualquer pessoa alfabetizada possa entender as teorias que perpassam a sociolinguística. Essa desmistificação da ciência e elucidação dos fenômenos naturais da língua coloca Bagno entre ‘os mais desprezados’ por gramáticos e defensores do tradicional português padrão, sendo chamado sempre de ‘linguista radical’.
O que uma parte das pessoas não compreende, é que Bagno não quis ditar novas regras sobre como escrever e falar, ele apenas explicou alguns fenômenos pra que possamos compreender o porquê as pessoas têm falas tão distintas de diferentes, mas que mesmo assim, têm muito em comum: o código linguístico. Aprender a norma é importante, porém compreender os processos da língua é fundamental para desfazermos os preconceitos contas os chamados de “asnos”, “caipiras” e “ignorantes” pelos gramáticos tradicionais, e fazer com que os falantes do português não-padrão tenham finalmente a democratização real do ensino.