Paulinha 06/04/2012
Eduardo Galeano. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2009.
“(...) Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo” (pág. 13).
“(...) Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais” (pág. 23).
“Os ninguéns: As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, e sim folclore. Que não tem cara, tem braços. Que não tem nome, tem número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policial da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata” (pág. 71).
“O sistema: Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta. Suas vitimas: quanto mais pagam, mais devem; Quanto mais recebem, menos tem; Quanto mais vendem, menos compram” (pág. 107).
“(...) Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador” (pág. 116).
“(...) Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão. Somos enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Pra mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo” (pág. 123).
“Paradoxos: Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós. Nem o próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo. Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stalin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino. Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quisote nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos. ‘Acho que você está nervosa’, diz o histérico. ‘Te odeio’, diz a apaixonada. ‘Não haverá desvalorização’, diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. ‘Os militares respeitam a Constituição’, diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa. Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o partido Comunista da Nicarágua. E paradoxalmente, foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho” (pág. 126-127).
“O sistema (2): Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juízes condenam as vitimas. Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os. As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas” (pág. 129).
“Existem um único lugar onde o ontem e o hoje se encontram e se reconhecem e se abraçam, e este lugar é o amanhã” (pág. 133).
“Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: Perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mau-olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de eu numa dessas distrações acabe deixando a vida cair”. (pág. 170).
“Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido. Tempos de o que me importa, que o que se há de fazer, do que é melhor não se meter, do salve-se quem puder. Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve, o trabalho não vale (...) chamamos o coração de bobo. E não porque se apaixona: o chamamos de bobo porque trabalha muito” (pág. 178).
“Bem-aventurados os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes” (pág. 216).
“Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora” (pág. 220).
“Os católicos me dizem que tudo isso aconteceu por obra da providência. E os comunistas, meus camaradas, dizem que foi tudo oba da coincidência” (pág. 221).
“A ventania: Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara” (pág. 270).