Darkpookie 27/07/2020
Comentários e trechos
A obra é um conjunto de diversos artigos e ensaios da Marcia Tiburi, alguns com linguagens acessíveis e outros bem complicados pelo teor filosófico e quantidade de referências. O livro é organizado por temas, então diversos textos sobre o mesmo assunto são colocados seguidos um do outro, o que pode tornar a leitura cansativa e repetitiva.
Em relação ao título, o livro fala muito mais sobre uma personalidade fascista (durante os ensaios ela sempre fala de "afetos": ódio, amor, medo, raiva, inveja, etc) do que sobre o fascismo histórico, ou seja, ainda que algumas características citadas sejam realmente de um governo fascista ou de um líder fascista, não são descritas todas as questões econômicas, sociais ou políticas do fascismo, apenas as que podem compor um caráter imputável a alguém (exemplo: propaganda ideológica, o medo do outro, o ódio a uma pessoa ou grupo, etc), coisas como o ultranacionalismo, populismo, aspectos econômicos, entre outros.
Algumas reflexões propostas pela Tiburi são essenciais ao debate público, como a repetição irrefletida de ideias ou frases prontas ser usada como argumentação, discurso de ódio, "alienação social por meio da linguagem", o vazio das ideias, a vontade do extermínio de pessoas com ideias contrárias ou somente um grupo específico, a incapacidade de se colocar no lugar do outro ou de mudar sua perspectiva, a levianidade do discurso e a falta do diálogo, entre outros. Entretanto, o uso do termo fascista (relacionável com a direita) me parece uma tentativa de não associar a esquerda, lado político que ela compõe, aos problemas sociais expostos por ela. Caso, algo como extremista, radical ou fanático fosse usado, as críticas tecidas por ela caberiam também a alguns grupos de esquerda.
Mais ou menos da metade do livro para a frente, a Tiburi para de falar sobre fascismo e a necessidade do diálogo (comenta apenas esporadicamente) e passa a falar mais sobre suas posições acerca de diversos temas como democracia, depressão, linchamentos, assédio, "cultura do estupro", legalização do aborto, a questão indígena, a televisão, as redes sociais e a internet, a identidade distorcida do brasileiro e do Brasil, o ato de falar, a falta do escutar, determinismo das ideias, "a arte de escrever para idiotas", etc. Muitas das opiniões eu discordo e diversos outros temas eu concordo, além de outros que simplesmente não entendi em razão da linguagem acadêmica e da citação de autores que não li.
A seguir trechos (não necessariamente concordo ou discordo deles) que achei interessantes ou questionáveis:
"Chamamos de ódio o afeto que se expressa como intolerância, violência projetiva ou, no extremo, declaração de morte ao outro."
"A aniquilação de certa ideia de sociedade, do senso do social, é sustentada no tipo de subjetividade fascista."
"A expressão do ódio parece, para muitos, a irrupção de algo irracional no seio de uma sociedade em si mesma razoável. Por isso, tendemos a vê-lo como algo de arcaico. No entanto, se o ódio irrompe no seio da sociedade civilizada em seu estágio tecnológico e, em nossa época, no ápice de tecnologia que é o digital, é porque, de algum modo, ele é parte dessa sociedade."
"O ódio não é uma substância presente em algumas pessoas por oposição a outras, mas um afeto que se constitui na experiência partilhada com outros."
"Se pensarmos nos discursos de incitação à violência — uma das formas expressivas do ódio —, veremos que ela é transmitida de cima para baixo, como numa engrenagem acionada de fora. Líderes políticos, publicitários, jornalísticos e todos os que detêm o discurso podem ligar essa máquina incitando ao ódio."
"Dialogar é complicado justamente porque não se trata apenas de falar e ouvir, o que já é muito difícil. A evitação pessoal e cultural do diálogo se deve ao fato da desconstrução que um diálogo promove. A complexidade do ato de escutar está em que, por meio da escuta, entro em outros processos de conhecimento. Torno-me outra pessoa."
Essa frase a seguir achei bem estranha e extrapolada:
"[...] o capitalismo é altamente pedófilo, enquanto manipulador de consciências imaturas e até mesmo inocentes. Toda a manipulação das crianças e dos jovens pela propaganda e pelos meios de comunicação configura o “caráter pedofílico” do capitalismo em sua fase atual."
"Neste contexto, as palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral, no púlpito tecnológico da televisão). Assim como, em sendo questionada, a palavra “Deus” gera o estigma do herege ou do ateu, a palavra “capitalista”, quando questionada, gera o estigma do “comunista”, ele mesmo tratado como um tipo de ateu em sua descrença crítica do sistema.
O capitalismo depende da criação de estigmas contra tudo o que vem a criticá-lo: pode-se usar a palavra “vândalo”, o termo “terrorista” ou qualquer outro com sentido invertido. Assim, a religião inventou o diabo e as mais diversas figuras de oposição. No esquema discursivo do capitalista a estigmatização protege da crítica. O discurso é a arma de proteção do capitalismo. Os críticos, por sua vez, temem dizer “capitalismo” para não serem acusados de “comunistas”. A ousadia de dar nome é perigosa como a pronúncia do nome de Deus em vão. Ou do nome do diabo. O antagonista é sempre estigmatizado."
Essa metáfora de criança e pedófilo é muito ruim e mal interpretável:
"A democracia é, portanto, uma forma política cuja característica é a alegria. A democracia é sempre alegre. A alegria é a força revolucionária interna à democracia. Mas ela precisa ser defendida para poder perdurar, porque a democracia é delicada. Porque a democracia é sempre criança. A imagem de uma criança que precisa de amor, de atenção, de cuidados para poder se tornar um adulto forte e preparado para a vida é sua expressão mais simples. Quem luta contra essa criança é perverso, ou autoritário. Por isso é que podemos nos perguntar se o clima da cultura política brasileira não é, neste momento, de perversão. Em relação à política, podemos dizer que muitos de nós estão sendo altamente pedófilos. Tratando a criança-democracia como um objeto sexual em que os anseios mais pervertidos se realizam sem limites.
É que o pedófilo não conseguiu deixar de ser criança. Ele fixou-se na infância e se identifica com ela, ao mesmo tempo que, abusando dela, abusa de si mesmo."
Brincar? Não consigo mesmo tragar essas frases:
"Constantemente vemos cidadãos infantilizados pelos meios de comunicação e por suas condições de classe, raça e gênero, produzindo estes acontecimentos de alto teor de analfabetismo político. Ao mesmo tempo, podemos nos colocar a questão acerca de tais cidadãos que como adultos mimados parecem crianças. Crianças que não gostam do jogo democrático por que não foram educadas para isso. Nossa cultura — sobretudo a cultura industrializada servida às massas — e nossa educação (des-educação) favorecem este cenário. Há manifestações em que as pessoas parecem crianças que, abusadas, e transformadas elas mesmas em abusadoras, já não querem mais brincar. O astro da pedofilia política tem um jeito de brincar bizarro."
???????
"O fascista está para a democracia como o pedófilo está para a criança."
"21. Crença útil
Diferente do simples crente para quem a verdade é o cerne de uma crença capaz de orientar pensamentos e atos, o fundamentalista usa sua crença, na qual, a propósito, não se pode ter certeza de que ele realmente creia. Ao usar a crença, o fundamentalista desrespeita não apenas a crença alheia, mas a própria crença em nome da qual age. A utilidade da crença está na submissão daquilo em que o fundamentalista não crê. Mas, sobretudo, sua função é escamotear um afeto de fundo, o ódio e relação ao incompreensível, ao que está em ligação direta com o transcendente. O neofundamentalista odeia a ideia de um deus, ou de deuses, que não sirva a seu propósito.
Falta-lhe justamente a função cognitiva da alteridade que lhe permitiria buscar algo como uma crença na transcendência, bem como no conhecimento — uma forma de transcendência —, e, assim, sair do circuito da ignorância com a qual ele se contenta porque, na estreiteza de raciocínio que lhe é própria, as coisas estão bem como estão. Assim é que ele pratica uma grande contradição em nome da verdade. Ele odeia a verdade que finge amar, assim como, no campo religioso, odeia a um Deus que ele não possa explicar. Enquanto, na verdade, entrega-se de corpo e alma à ignorância que, de certo modo, prova a si mesma como a única verdade real. Sem condições de saber que nada sabe, ele se entrega não à verdade, mas à violência em seu nome. Como um desesperado, sem um Deus e quem possa confiar, ele se autodenuncia em sua descrença. O fundamentalista é a prova de que Deus, mesmo que possa existir, não existe."
No artigo desta frase a seguir e nos daí em diante, ela começa uma discussão sobre a categoria política da vida. O que me incomoda é o desleixo com que a Tiburi aborda a depressão, fazendo parecer algo puramente social, não biológico, o que pode levar a interpretações erradas sobre essa doença, sem aspas. Tem um texto especificamente onde ela aborda a depressão como questão cultural, mas, se tratando de pessoas não podemos ignorar nenhum dos três pilares humanos: biologia, psicologia e sociologia.
"No cenário político brasileiro, há quem, sendo sensível como Virginia Woolf, pense que seria melhor morrer de vez. Há quem se deprima e pense em se matar. A depressão também é uma categoria política. Em tempos de psiquiatrização da vida cotidiana, a depressão torna-se “doença” para evitar que seu conteúdo político venha à tona."
No ensaio da frase a seguir, Deriva, ela usa uma metáfora do ato de lançar uma garrafa ao mar enquanto estamos ilhados para falar sobre a experiência virtual da internet e o diálogo nas relações. Interessante:
"O desespero está no fato de que nenhuma âncora toca o chão e todas nos enganam de que alcançaremos a segurança ou a certeza desejadas. Mas tudo bem, uma ilusão já nos agrada. A metáfora da ilha nos faz saber que, pelo menos, podemos contar com esse pedacinho seguro de chão que significa ficar no mesmo lugar com os desejos controlados, ou “colonizados” pela propaganda que nos leva a consumir. A fantasia do chão firme. Nos completamos como se toda a nossa busca na vida se resolvesse em nós mesmos. É que, na verdade, talvez em nossa época não haja busca realmente. Não nos impressiona pensar que a existência de cada um seja um fim em si mesmo, mas como estamos ilhados, acreditamos que isso vale apenas para nós."