Tamirez | @resenhandosonhos 02/08/2018EnraizadosEsse livro é inspirado em lendas do folclore eslavo, se propondo a utilizar esses elementos para criar uma fábula única. A autora foi indicada ao Hugo Awards e venceu o Nebula em 2015, mas mesmo com o peso das premiações, essa foi uma história que não funcionou comigo.
Se tem algo que aprendemos com os contos de fadas e fábulas ao longo dos anos e com a evolução da sociedade é que eles não eram 100% corretos. Porém, ao fim, havia sempre uma lição que amarrava tudo e justificava certas ações, enquanto punia outras. Basicamente, a missão desse tipo de narrativa é ter uma bela lição de moral a ser ensinada. Enraizados até tem, porém se esqueceu que precisava explicar e trabalhar também o resto do livro.
“A floresta estrangularia todas as coisas e as arrastaria para baixo de suas raízes.”
O que diz respeito à natureza, o problema final, o ato que aponta o propósito da história, é sim muito bacana. É uma abertura de pensamento sobre como o homem desenvolve sua relação com a natureza e como ela não é verdadeiramente igualitária, quando tiramos muito mais do que recebemos. Entretanto, isso só vem nos últimos capítulos do livro, deixando todo um mar de problemas espalhado pelo caminho.
E assim, eu nem vou entrar aqui na discussão da tendência “Bela e a Fera” que temos estampada na sinopse da história. Acho que todo mundo sabe que a tradicional trama do cara “mau” que mantém a mocinha em cativeiro, esconde algum grande segredo e pelo qual a garota sempre se apaixona não é o cenário mais certo do mundo. Não, vou completamente abstrair disso e andar um pouco mais a frente.
Aqui vamos ter um personagem masculino privilegiado e intocável por causa de sua posição. Isso dá a ele o direito de fazer o que ele quiser, desde levar milhares de pessoas à morte por infantilidades, cometer tentativa de estupro, obrigar alguém a se casar e ainda ter tudo isso apontado como algo a que não se pode fazer nada contra. Pior. Que a garota alvo dessas coisas chegar ao ponto de afirmar que “entende” porque o ele é assim e, se estivesse na situação dele, faria igual.
Eu realmente me contorci durante essa leitura tentando achar o fundamento disso, levando em consideração que os quatro momentos absurdos que temos ligados a isso são completamente dispensáveis à trama principal, apontando que isso estar ali, sem ser usado ou trabalhado, acaba por só comprometer a narrativa de uma forma injustificável.
“Pior do que estar sozinha era sentir que nenhum deles era meu amigo nem me desejava nenhum bem.”
E, falando em justificativas, eu esperei por ela até o último minuto. Porque a autora aqui tinha numa bandeja o argumento para expor o personagem, “justificar” seus atos, fazer com que a gente o compreendesse, e isso não acontece. Ao fim, quando parece que Novik quer que o leitor sinta até certa pena do personagem em questão – o que ao meu ver é simplesmente impossível-, ela joga fora a oportunidade de por sobre a maldade, a corrupção ou seja lá o nome que ela quisesse dar, pra costurar esses atos, redimir, problematizar, explicar, dizer que aquilo era errado. Mas a autora não o faz. Ela não captura as coisas péssimas, machistas e opressoras que incluiu em sua história para trabalhar o assunto. Isso está apenas ali e o leitor tem que superar, fazer vista grossa, fazer de conta que faz sentido.
Pra mim, quando a autora se propôs a criar uma história em formato fábula, ela adquire responsabilidade sobre todo e qualquer montante de “coisa ruim” que há em sua obra a fim de dar aquilo uma visão de transformação. Porém, aqui, o que Naomi Novik faz é apenas escolher a parte que lhe convém para passar a mensagem e deixar tudo de errado que foi exposto no livro como algo ok. E isso pra mim simplesmente não funciona, principalmente quando se vê claramente que nenhuma dessas coisas era essencial para a trama principal. Nós realmente poderíamos ter vivido sem ler essas coisas com perda zero na construção da narrativa.
Por baixo dos problemas a autora consegue contar uma história que não fica presa ao básico, que seria apenas acompanhar a protagonista treinando. Vão haver deslocamentos, mudanças de foco e uma ou duas surpresinhas. Agnieszka não é coerente em toda a sua jornada. Assim como por vezes é forte e determinada, por outras soa imatura, com uma preparação e conhecimento que surge do nada e com decisões e posturas de quem bate continência. Ela é exposta o tempo todo com uma garota desastrada e não é difícil reparar, pela constante repetição, que isso marca mais que superficialmente quem ela é ou sua “posição” dentro desse mundo.
Já o dragão é o mago misterioso, que apesar de ter centenas de anos ainda é um jovem atraente e que esconde suas camadas de segredos por baixo do semblante de medo que causa nas pessoas. Ele é o típico boa pinta mau humorado que quer mandar em tudo, mas que fica estudando a menina com rabo de olho e que esperamos a qualquer momento que vá se abrir como uma flor. Então, como dá pra reparar, a história tem seus diferenciais, mas também os clichês que andam de mãos dadas.
A narrativa começa rápida, mas achei que no desenvolvimento fica um pouco arrastada. Há muitas descrições de ambientes e roupas, tornando o fluxo mais lento. A capa é super bonita e a proposta de história também é muito interessante, como já mencionei pelo seu final e o elo com a natureza. Porém tudo o que caminhei pra chegar ao desfecho não valeu a pena. Acho que o que mais me surpreendi foi ver o quanto o livro estava sendo bem cotado e perceber que ninguém estava levantando essas questões. Foi uma daquelas experiências onde eu me senti meio “alien” por ter uma opinião que claramente vai contra o fluxo.
Pra mim, como já deixei claro, foi impossível ignorar esses elementos na história e fingir que estava tudo bem eles estarem ali sem problematização. E, sendo a autora uma mulher, acho que fiquei ainda mais chocada com a leviandade que ela tratou tais assuntos. De qualquer forma, como sempre digo, gosto é gosto e se a história lhe chamar a atenção, leia para tirar suas próprias conclusões.
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